Pronunciamento do deputado Ivan Valente sobre a polêmica travada nos EUA de expansão dos serviços públicos de saúde. Ao debater os dilemas do governo Obama, Ivan Valente destaca que em São Paulo segue a política privatista do governo Serra que apresentou à Assembléia Legislativa projeto de lei complementar que prevê a terceirização de toda a rede de saúde do Estado.
Sr Presidente, Sras e Srs Deputados,
Gostaria de tratar de um tema que desde o início de agosto vem causando polêmica e colocando em debate diferentes concepções sobre o papel do Estado na garantia de direitos à população: a reforma na Saúde proposta pelo governo de Barak Obama nos Estados Unidos. Pode parecer um tema que não diz respeito ao nosso país, mas o fato é que muitos dos problemas enfrentados pelos estadunidenses são os mesmos que se repetem cotidianamente aqui no Brasil.
Nos Estados Unidos, cerca de metade da população possui o que eles chamam de seguro-saúde, contratado de empresas privadas; cerca de um terço têm cobertura dos programas públicos; e o restante, aproximadamente 50 milhões de pessoas, não contam com qualquer garantia no acesso a tratamento. Tratam-se, sobretudo, de pobres, imigrantes e idosos.
No caso daqueles que pagam o seguro-saúde, a exploração das empresas privadas é brutal: as franquias são cada vez maiores – o que faz com que milhares percam seus seguros por dia –; exigem co-participação dos segurados; recusam clientes de idade avançada e com doenças pré-existentes e, em caso de doenças graves ou crônicas, podem levar os americanos à falência. Dois terços das falências pessoais nos Estados Unidos têm como causa dívidas com seguradoras de saúde, hospitais e médicos. Enquanto isso, o país amarga dados nada interessantes em índices básicos como mortalidade infantil e expectativa de vida. O país mais rico do mundo está em 40º nestes casos.
Obama resolveu então cumprir sua promessa de campanha e apresentou ao Congresso americano uma proposta de reforma no sistema de saúde. A idéia é aprovar um plano que melhore a quantidade e qualidade da cobertura médica e barateie os custos de saúde no país. Entre as propostas estão: universalizar gradativamente a cobertura dos seguros-saúde; proteger a população do endividamento, garantindo a cobertura em caso de perda de emprego; eliminar barreiras por doenças pré-existentes, suspendendo os limites impostos pelas empresas; permitir a portabilidade de seguros; melhorar a qualidade do atendimento.
Para isso, as companhias seguradoras não poderão cobrar preços abusivos, nem recusar idosos e doentes ou cancelar um plano em caso de determinada doença, além de serem obrigadas a oferecer gratuitamente serviços preventivos. Também há a idéia de se criar uma empresa de seguro-saúde estatal para competir com as privadas. Na prática, a reforma proposta por Obama tem como foco central aqueles que já têm acesso a alguma tipo de atendimento, e não os 50 milhões que carecem de qualquer proteção à saúde. Tanto que a Casa Branca está descrevendo a reforma como do seguro-saúde, e não do sistema como um todo.
Mesmo com estas limitações, o projeto mexe nos bolsos das empresas privadas de saúde, por isso a proposta tem encontrado tanta resistência no Congresso americano. Os republicanos e seus aliados têm acusado Obama de promover um controle governamental excessivo do sistema e de aumentar o tamanho do Estado, chegando a falar em estatização do setor. Outra crítica é o preço da reforma, que custaria aos cofres públicos, em tempo de crise econômica, cerca de US$ 1,5 trilhão em 10 anos. Há quem diga que o financiamento público da saúde levará a uma perda de qualidade no atendimento e à falência da rede privada.
Trata-se, Sr. Presidente, da mais pura manifestação dos poderosos lobbies do setor privado e de um embate ideológico com a concepção que defende a mercantilização da saúde. Não é à toa que outros presidentes que antecederam Obama tentaram reformar o setor e foram vencidos pelos interesses financeiros da saúde. Numa sociedade construída sob a lógica do cidadão-consumidor, a resistência em ampliar o papel do Estado, tirando competências hoje restritas ao “mercado eficiente”, é muito grande. Tanto que a opinião pública americana está dividida. Dois terços da população negra e 60% dos imigrantes latinos defendem que a reforma deveria atender àqueles que não têm qualquer acesso à saúde, enquanto a maioria da população branca acha que o foco deve ser mesmo o controle dos custos das seguradoras. A polêmica é tanta que a até a popularidade de Obama tem caído nas pesquisas e fica cada vez mais claro que ele não conseguirá passar a reforma da saúde no Congresso sem fazer concessões às empresas privadas.
É preciso dizer, no entanto, que a reforma proposta por Obama é o mínimo que se pode fazer nos Estados Unidos, e algo que, mesmo causando tanta polêmica, está longe de recolocar o Estado no seu papel central de garantidor do direito à saúde da população. É uma reforma focada no papel regulador do Estado e não na função provedora do serviço de saúde, o que seria urgente para os cidadãos que simplesmente não podem pagar para não morrerem se ficarem doentes. Essa seria a grande transformação necessária: tratar a saúde como um direito e não um privilégio; e os cidadãos como usuários de um serviço que deveria ser público, em vez de consumidores com condições ou não de pagar para salvar suas vidas.
Mas enquanto nos Estados Unidos o presidente Obama luta para superar o impasse causado pelas empresas de saúde, aqui no Brasil nossos governantes caminham no sentido contrário, entregando para a iniciativa privada mais uma fatia do serviço público. Em São Paulo, o governador José Serra apresentou à Assembléia Legislativa um projeto de lei complementar que permitirá a terceirização de toda a rede estadual de saúde para as chamadas OSs, as organizações sociais. O projeto permitirá que essas entidades, que já administram hoje 25 hospitais do Estado de São Paulo e parte considerável da rede municipal da capital, passem a atuar em serviços de saúde já existentes. E, pior, permitirá que fundações de apoio aos hospitais de ensino atuem como OSs.
Segundo reportagem publicada nesta segunda-feira pelo jornal Folha de S.Paulo – que inclusive defende a medida por acreditar que o mercado é mais eficiente que o Estado – desde 2004 o orçamento da Saúde estadual destinado às OSs cresceu 202%. Este ano, serão dois bilhões de reais dos cofres públicos direto para a iniciativa privada, sem passar por licitações, sem a devida transparência na prestação de contas, sem controle social, sem garantia da universalização no atendimento.
Enfim, Sr. Presidente, Serra está preparando o caminho para mais uma privatização do setor público, como tem feito com a distribuição de água, de energia elétrica, com as rodovias e com o sistema bancário. Quem conhece de perto a realidade das terceirizações na saúde em São Paulo sabe o quanto este modelo é danoso aos recursos públicos e viola o direito à saúde da população. É só visitar a rede AMA de ambulatórios criados pela gestão Kassab na Prefeitura da minha cidade para ver os resultados desta política privatista. Por isso, é fundamental combatermos esta lógica. Nos Estados Unidos e aqui no Brasil, saúde é direito do cidadão e deve ser vista como dever do Estado.
Muito obrigado.
Ivan Valente – Deputado Federal PSOL/SP