artigo de Roseli Fischmann*
“Ratificar o acordo significará o Congresso Nacional alçar a Igreja Católica, por meio de um acordo internacional, a um patamar oficialmente diferenciado das demais religiões, denominações e formas de não-crer ou descrer”
As concordatas entre o Vaticano, ou mais apropriadamente, a Santa Sé e governantes de países ocorreram em diferentes momentos da história, sendo marca de processos políticos arcaicos de união da esfera religiosa com a esfera estatal, avessa ao princípio da laicidade, característica dos Estados democráticos modernos.
Dentre os exemplos mais recentes, a primeira metade do século XX registra concordatas que a Santa Sé assinou com Salazar, Mussolini e Hitler, cada qual quando se iniciava à frente de regime totalitário, de conseqüências nefastas conhecidas por todos.
No livro O Papa de Hitler (Imago, 2002), tratando de Pacelli, ou religiosamente o papa Pio XII, o historiador John Cornwell traz depoimento do chanceler alemão entre 1930 e 1932, Heinrich Brüning: “O sistema de concordatas levou-o [Pacelli] e ao Vaticano a desprezarem a democracia e o regime parlamentar. (…) Os governos rigorosos, a centralização rigorosa e os tratados rigorosos deveriam promover uma era de ordem estável, uma era de paz e tranqüilidade.”
É o aparente menosprezo pela democracia e pelo regime parlamentar, conjuntamente à ameaça ao Estado laico, que leva à necessidade de mobilização para que, em prol da cidadania, o Congresso Nacional não ratifique o acordo entre o Governo Brasileiro e a Santa Sé assinado no Vaticano no dia 13 de novembro deste ano.
A tentativa de negar que não se trata de concordata, porém “simples” acordo é invalidada pelo padre Saturnino Gomes, Diretor do Centro de Estudos de Direito Canônico – UCP: “Ao longo da história foi necessário regulamentar as relações entre a Igreja e os Estados mediante Convenções entre as duas partes. Receberam o nome de Concórdias, Pazes, Capitula Concordata; hoje, Acordos; de forma corrente Concordatas.” (www.agencia.ecclesia.pt/noticia_all.asp?noticiaid8696&seccaoid8&tipoid101).
Há diversos pontos do acordo, que passou a poder ser acessado no site do Ministério das Relações Exteriores apenas após a sua assinatura, que demonstram que aquele documento nega a laicidade do Estado, ao negar a missão do Poder Legislativo como representante eleito pela vontade popular, negando assim a própria cidadania brasileira.
Isto porque se trata de um acordo internacional bilateral, instrumento que, segundo a Constituição Federal, é prerrogativa do Presidente da República assinar, e que deverá, depois, ser ratificado pelo Congresso Nacional, em uma segunda fase, passando então a integrar a ordem jurídica brasileira.
É nessa fase que se encontra o processo desse acordo entre o Vaticano e o governo brasileiro, momento em que a soberania nacional pode ser garantida, enquanto é negada na atual proposta. Ou seja, ainda que contendo artigos inconstitucionais, é anterior o motivo pelo qual o Congresso Nacional não deve ratificar o texto assinado, não o aceitando e não permitindo assim que se consolide como acordo.
É bom frisar que outros acordos bilaterais têm comumente um papel prático, de resolver em geral questões comerciais que mais envolvem o Executivo e a condução dos negócios do governo, daí a Constituição Federal buscar agilidade concedendo ao Presidente da República essa prerrogativa, mas ainda assim exigindo ratificação posterior. Ou para celebrar a paz, quando é cercado de sigilo para garantir a possibilidade do fim da guerra. Convém também lembrar que acordos bilaterais não podem ser denunciados unilateralmente, exigindo nova negociação; e, no caso desse acordo, se ratificado, com as complexidades advindas do envolvimento de dois Estados, um democrático e um teocrático.
A ambigüidade da situação é dada pela identidade jurídica peculiar do Vaticano, ora a apresentar-se como Estado, a Santa Sé, ora a apresentar-se como religião, a Igreja Católica. Ao invocar a identidade como Estado, lança mão do instrumento do acordo internacional bilateral, com isso ganhando facilidades para se aproximar da ordem jurídica nacional, engolfando-a em aspectos de interesse do Vaticano.
Se aprovado pelo Congresso Nacional, o texto do acordo passa a integrar o direito brasileiro, atropelando processos legislativos complexos como os que nossa ordem constitucional garante, tanto do ponto de vista processual da técnica legislativa, quanto das negociações políticas inerentes à democracia.
Pelo artigo 18 do acordo, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB, instituição nacional, passa a ser privilegiada para negociar a regulamentação da Concordata. Do ponto de vista do Vaticano é ungida; do ponto de vista do direito brasileiro, é privilegiada com o status internacional para agir localmente – privilégio que nenhuma outra religião ou denominação, no Brasil, terá como receber. Em Portugal a regulamentação da concordata assinada em 2004 se estende até o presente, havendo lá uma “comissão paritária”, com membros nomeados pelo Vaticano e membros do governo para decidir sobre assuntos nacionais, como o ensino religioso nas escolas públicas.
Observe-se que o texto assinado busca justificação “baseando-se, a Santa Sé, nos documentos do Concílio Vaticano II e no Código de Direito Canônico, e a República Federativa do Brasil, no seu ordenamento jurídico”. Ora, essa identidade dupla – Santa Sé, como identidade política de Estado, e Igreja Católica, como religião – tem direito de escolher a norma que quiser para regulamentar sua vida e de seus seguidores; estes merecem respeito em seu direito de crença e culto, mas também merecem que sejam respeitados seus demais direitos como cidadãos brasileiros, sendo que poderão invocá-los quando quiserem, sem restrições ou privilégios.
Já o Brasil, sendo uma República, que tem no princípio da laicidade do Estado um de seus fundamentos desde sua proclamação em 1889, pode evidentemente dialogar, como dialoga com religiões e outras forças sociais, mas não fazer acordo com entidade jurídica que, baseando-se em princípios teocráticos e normas exaradas a partir desses mesmos princípios, busca estabelecer condutas e deveres, enquanto suprime direitos de cidadãos brasileiros em território brasileiro.
Mais que estabelecer o território dos templos católicos como se tivessem imunidade diplomática, o acordo estende seu braço normativo e restritivo de direitos estabelecidos pela Constituição Federal ao conjunto da cidadania brasileira. Como isso se dá?
Vejamos alguns exemplos. O artigo 12 do texto assinado no Vaticano afirma a possibilidade de se atribuir validade civil ao casamento religioso, como previsto na Constituição Federal, contudo inovando ao expandir para a Igreja Católica em seu parágrafo 1.º: “§ 1º. A homologação das sentenças eclesiásticas em matéria matrimonial, confirmadas pelo órgão de controle superior da Santa Sé, será efetuada nos termos da legislação brasileira sobre homologação de sentenças estrangeiras.”
Se o caput do artigo não inova em relação ao que já permite a Constituição Federal, ou seja, que casamentos religiosos em geral, desde que reconhecido pela respectiva autoridade religiosa, aí incluídas religiões e denominações com existência regular no Brasil, possam ter efeito civil. A inovação se dá a abrir a porta para que anulações religiosas sejam reconhecidas com validade civil, privilegiando uns contra outros que dependem, para igual medida, de trâmites junto a apropriados órgãos do Estado, com o respectivo tratamento jurídico.
É que, por não reconhecer o divórcio, tendo inclusive retardado ao máximo a aprovação da lei que o estabeleceu no Brasil apenas
em 1977 – e frente ao fato de que muitos católicos se vêm na iminência humana de valer-se do direito que lhe é próprio como cidadão brasileiro de divorciar-se e contrair novo matrimônio -, a Igreja Católica procura saídas por sobre a legislação brasileira, deixando decisões delicadas a cargo de pessoas e processos não ligados ao Estado, portanto sem garantia de isonomia no tratamento das diferenças.
Assim, o princípio da igualdade é violado duplamente: pelo procedimento, à margem do Judiciário, e por colocar o Estado brasileiro a tratar como estrangeiro, no Brasil, o próprio cidadão brasileiro. Ou seja, neste caso, o texto do acordo atropela a soberania nacional, o Legislativo e o Judiciário.
Um exemplo se deu em Portugal. Em virtude da concordata assinada por Salazar em 1940, ao ser implantado o divórcio em 1975, o governo português foi chamado a firmar protocolo adicional àquele acordo, recomendando: “A Santa Sé, reafirmando a doutrina da Igreja Católica sobre a indissolubilidade do vínculo matrimonial, recorda aos cônjuges que contraírem o matrimónio canónico o grave dever que lhes incumbe de se não valerem da faculdade civil de requerer o divórcio” (www.laicidade.org/wp-content/uploads/2007/07/concordata-1940.pdf).
Ora, que a Igreja Católica oriente seus fiéis a respeito é parte do direito à liberdade de crença e de culto, mas que o Estado assine semelhante recomendação e no grau de tratado internacional não há de ser a situação republicana desejada pelo Brasil.
Outro exemplo encontra-se no artigo Artigo 3.º: “A República Federativa do Brasil reafirma a personalidade jurídica da Igreja Católica e de todas as Instituições Eclesiásticas que possuem tal personalidade em conformidade com o direito canônico, desde que não contrarie o sistema constitucional e as leis brasileiras, tais como Conferência Episcopal, Províncias Eclesiásticas, Arquidioceses, Dioceses, Prelazias Territoriais ou Pessoais, Vicariatos e Prefeituras Apostólicas, Administrações Apostólicas, Administrações Apostólicas Pessoais, Missões Sui Iuris, Ordinariado Militar e Ordinariados para os Fiéis de Outros Ritos, Paróquias, Institutos de Vida Consagrada e Sociedades de Vida Apostólica.
§ 1º. A Igreja Católica pode livremente criar, modificar ou extinguir todas as Instituições Eclesiásticas mencionadas no caput deste artigo.
§ 2º. A personalidade jurídica das Instituições Eclesiásticas será reconhecida pela República Federativa do Brasil mediante a inscrição no respectivo registro do ato de criação, nos termos da legislação brasileira, vedado ao poder público negar-lhes reconhecimento ou registro do ato de criação, devendo também ser averbadas todas as alterações por que passar o ato.”
Partes do texto indicam um tipo de independência e autonomia da Igreja Católica, criando ou extinguindo instituições, enquanto o Estado submete-se, contendo o acordo esse veto à ação do Poder Público. A porta que se abre aí é ao arbítrio, inclusive com a possibilidade de alianças de momento, respaldadas por esse acordo, para vetar religiosos e leigos católicos eventualmente ligados a questões políticas que possam ser consideradas indesejáveis pelos governantes.
Um exemplo desse tipo de “colaboração” está na já citada obra O Papa de Hitler. Cornwell relata (p.195) visita de Pacelli aos Estados Unidos, em outubro de 1936, ainda como Secretário de Estado do Vaticano: “houve (…) uma discreta troca de favores entre o presidente Roosevelt e Pacelli. Roosevelt queria ajuda para reprimir o padre Charles Coughlin, um sacerdote católico que falava pelo rádio todas as semanas, com uma pregação subversiva para 15 milhões de americanos. (..) Roosevelt queria que Coughlin fosse contido. Pacelli por sua vez estava preocupado com o fato de os Estados Unidos terem reconhecido a União Soviética três anos antes. Agora, ele esperava garantias de uma aliança com Roosevelt, por meio de vínculos diplomáticos formais entre os Estados Unidos e o Vaticano.”
No campo do interesse científico, o acordo determina, no artigo 6.º, que “o patrimônio histórico, artístico e cultural da Igreja Católica, assim como os documentos custodiados nos seus arquivos e bibliotecas, constituem parte relevante do patrimônio cultural brasileiro”, deixando ao Estado, por “cooperação”, a responsabilidade de “salvaguardar, valorizar e promover a fruição dos bens, móveis e imóveis”.
Quanto a todos os documentos históricos que hoje estão sob guarda da Igreja Católica no Brasil, a eles será facilitado o acesso com a ressalva: “salvaguardadas as suas finalidades religiosas e as exigências de sua proteção e da tutela dos arquivos”. Ou seja, as possibilidades de acesso a documentos que o Estado auxiliará a conservar e manter, para pesquisa histórica ficarão oficialmente sob tutela privada e não-científica.
Para finalizar, dentro dos limites deste artigo, ratificar o acordo significará o Congresso Nacional alçar a Igreja Católica, por meio de um acordo internacional, a um patamar oficialmente diferenciado das demais religiões, denominações e formas de não-crer ou descrer.
Uma série de perguntas e respostas colocadas na internet pela Diocese de Limeira não deixa dúvidas quanto à consciência que têm desse tratamento diferenciado que estão a buscar e da exclusão que causam aos demais: “Outras confissões, no Brasil, poderão seguir o exemplo, tendo, como cidadãos e como grupos, iguais direitos e deveres. Elas poderão concluir convênios com o Estado e pedir a aprovação de medidas, legislativas ou administrativas, que definam, analogamente, o “estatuto jurídico” delas. Apenas não poderão celebrar com o Estado um Acordo internacional, não sendo, como a Santa Sé, sujeitos soberanos de direito internacional e membros da Comunidade internacional.” (http://www.diocesedelimeira.org.br/noticias.php?NotID3010)
Mas nada ultrapassa o fato de que os católicos passariam a ser tratados como cidadãos diletos, privilegiados por um acordo internacional a garantir sua posição religiosa, ainda que a ameaçar direitos que têm como cidadãos brasileiros (e, já comentado em outros artigos, o direito trabalhista dos sacerdotes, para o que já existe legislação nacional, que poderiam invocar, referente a ministros religiosos em geral, de todas as religiões e denominações, sem distinção e exclusividade).
O próprio sigilo com quem foram tratados os termos do acordo indica o peso que a Igreja Católica já tem por si, sem precisar ainda buscar mais instrumentos de reforço desse poderio. Quem necessita de instrumentos de proteção e promoção são as minorias religiosas, como estabelecido pela Declaração Internacional dos Direitos das Minorias Nacionais, Religiosas, Étnicas, Culturais e Lingüísticas da ONU, da qual o Brasil é signatário – e não de se sentirem humilhados pelo Poder Público, e acuados em seu direito à liberdade de consciência, de crença e de culto.
Os conflitos religiosos têm vitimado a humanidade ao longo da história e o Estado brasileiro criar as bases para a distinção entre “classes” de brasileiros é inaceitável. A história de luta e sofrimento em prol da democracia não permite que o Congresso Nacional se cale e aceite o que amarrará seus próprios atos, consumando esse acordo inconstitucional.
Roseli Fischmann é professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da USP, onde é coordenadora da área Filosofia e Educação. Artigo escrito para o “JC e-mail”: http://www.jornaldaciencia.org.br:80/Detalhe.jsp?id=60450 – Publicado originalmente em 10 de dezembro de 2008