Autor de requerimento que criou comissão, deputado afirma que país gasta metade de seu orçamento com pagamento de juros, amortizações e rolagem de débitos. Uma CPI para desagradar ao governo e à oposição. Assim pode ser definida a comissão parlamentar de inquérito instalada totem (19) na Câmara para apurar a dívida pública brasileira. A resistência dos parlamentares em mexer no assunto pode ser medida pelo tempo em que o seu pedido de criação se arrastou na Casa. Mais de um ano se passou entre a apresentação das assinaturas até a instalação do colegiado. Sem atrair os mesmos holofotes que outras comissões, a CPI da Dívida Pública deve centrar fogo nas gestões do PSDB, do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, e do PT, do presidente Lula.
Edson Sardinha
Criada com base em levantamento do Congresso em Foco, a comissão foi encampada pelo deputado Ivan Valente (Psol-SP), que vê em sua instalação o primeiro passo para a realização de uma auditoria nas dívidas interna e externa da União, dos estados e dos municípios, como prevê a Constituição Federal.
“Se pegarmos os governos Fernando Henrique Cardoso e Lula, de 1995 a 2008, veremos que foram pagos cerca de R$ 1,8 trilhão em juros e amortizações. Nesse mesmo período, a dívida interna cresceu de R$ 61 bilhões para R$ 1,68 trilhão. O governo FHC decuplicou a dívida até 2002. O governo Lula acrescentou um trilhão a esse montante”, diz Ivan Valente, citando dados da ONG Auditoria Cidadã da Dívida.
De acordo com o deputado, o país gasta metade de seu orçamento todos os anos apenas com o pagamento de juros, amortizações e rolagem da dívida pública. Dinheiro que deixa de ser gasto com áreas prioritárias e carentes, como saúde e educação pública.
“Só em 2008, gastamos R$ 282 bilhões com juros e amortizações da divida pública. Na fatia da arrecadação de impostos, isso corresponde a 30,5% da arrecadação tributária. Se somarmos a isso a rolagem da dívida, ou seja, a emissão de títulos públicos para empurrar a dívida pra frente, chegamos à conclusão de que 48% do orçamento brasileiro foram consumidos com juros e pagamento da dívida. Em outras palavras, metade do esforço nacional é para satisfazer as necessidades do mercado internacional e trabalhar com a especulação financeira do país”, reclama Ivan Valente.
Esclarecimentos
Eleito segundo vice-presidente da CPI, o deputado paulista adianta que a comissão vai cobrar explicações do Banco Central sobre quem são os maiores detentores de títulos da dívida pública e convocar diretores e ex-dirigentes da instituição. “Pretendemos convocar para depor o presidente do BC, Henrique Meirelles, e ex-presidentes como Armínio Fraga e Gustavo Franco, entre outros. Esperamos que essa CPI não seja para abafar nada, mas para esclarecer o público”, afirma.
A iniciativa de Valente se baseia em matéria publicada pelo Congresso em Foco que mostrou que o governo federal destinou mais de R$ 851 bilhões somente para o pagamento de juros nominais da dívida pública consolidada (interna e externa) entre 2003 e 2007.
Para se ter uma idéia desse valor, é como se cada um dos 186 milhões de brasileiros tivesse desembolsado R$ 4,57 mil, em cinco anos, para o pagamento de juros da dívida, contraída pelos governos federal, estaduais e municipais, o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) e as estatais brasileiras. O montante equivale a 22 vezes o que o governo federal previa arrecadar só em 2008 com a extinta Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF) (leia mais).
Leia a íntegra da entrevista de Ivan Valente:
Congresso em Foco – O que significa a instalação da CPI da Dívida Pública?
Ivan Valente – Conseguimos mais de 190 assinaturas há mais de um ano. A criação da CPI foi assinada pelo ex-presidente da Câmara Arlindo Chinaglia em dezembro do ano passado. A Câmara demorou sete meses para nomear os integrantes da CPI. Isso mostra a preocupação da Casa com um assunto dessa relevância, que é o verdadeiro gargalo do desenvolvimento econômico do país.
Por que o assunto tem tanta importância para o país?
Os números falam por si só. Nosso requerimento se baseou em reportagem do Congresso em Foco que mostrava que cada brasileiro pagou o equivalente a R$ 4,7 mil com juros da dívida pública em cinco anos. Depois disso, nós fizemos outros levantamentos com a Auditoria Cidadã da Dívida. Só em 2008, gastamos R$ 282 bilhões com juros e amortizações da divida pública. Na fatia da arrecadação de impostos, isso corresponde a 30,5% da arrecadação tributária. Se somarmos a isso a rolagem da dívida, ou seja, a emissão de títulos públicos para empurrar a dívida pra frente, chegamos à conclusão de que 48% do orçamento brasileiro foram consumidos com juros e pagamento da dívida. Em outras palavras, metade do esforço nacional é para satisfazer as necessidades do mercado internacional e trabalhar com a especulação financeira do país. No primeiro semestre, segundo números da Auditoria Cidadã, chegaríamos a 34% com juros de amortizações. Se pegarmos os governos Fernando Henrique Cardoso e Lula, de 1995 a 2008, veremos que foram pagos cerca de R$ 1,8 trilhão em juros e amortizações. Nesse mesmo período, a dívida interna cresceu de R$ 61 bilhões para R$ 1,68 trilhão. O governo FHC decuplicou a dívida até 2002. O governo Lula acrescentou um trilhão a esse montante.
Mas o governo diz que não há mais dívida externa. O senhor não concorda?
Existe, sim, dívida externa. É de 208 bilhões de dólares. Eles dizem que acabou porque o país tem reservas internacionais que cobririam montante semelhante ao da dívida externa brasileira. Mas é importante frisar: três quartos das reservas internacionais brasileiras, ou seja, 140 bilhões de dólares, estão investidos em títulos do Tesouro americano.
Por que isso é mau negócio para o país?
Sabe quanto eles rendem? Entre 0% e 1%. Enquanto isentamos de impostos especuladores financeiros que entram na bolsa e compram nossos títulos da dívida, nós deixamos lá o dinheiro para render menos de 1%. Além disso, pagamos o dinheiro que eles nos mandam a juro real de 6%. É um mecanismo perverso.
Que efeito isso tem na economia como um todo?
A dívida pública condiciona a política econômica como um todo. O conceito de superávit primário, criado no Conselho de Washington, só existe para pagar juros e amortização da dívida. Quer dizer, é economia para pagar juros da dívida pública. É um mecanismo para garantir a supremacia do mercado financeiro. Por que as altas taxas de juros no Brasil não caem? Porque aqui o mando do capital financeiro é total. Falta debate público sobre essa questão.
Quem são os culpados por essa falta de debate?
O Congresso e os meios de comunicação de massa não debatem uma questão como essa, nem a não realização de uma auditoria da dívida pública. Isso ocorre porque o mercado financeiro é o grande financiador tanto dos partidos políticos quanto da grande mídia. Essa discussão precisa vir à tona. A CPÌ tem tudo para prestar enorme serviço à sociedade como um instrumento de esclarecimento.
Na prática, como a CPI vai funcionar?
Como autor do requerimento de criação, vou reivindicar a presidência, mas estou pessimista em relação a isso. Nossa estratégia é apresentar diversos requerimentos. Entre eles, um questionando os integrantes do Copom (Comitê de Política Monetária), gente que estabelece a taxa de juros e debate a política monetária do país e depois vai para a iniciativa privada representar as instituições financeiras. Pretendemos convocar para
depor o presidente do BC, Henrique Meirelles, e ex-presidentes como Armínio Fraga e Gustavo Franco, entre outros. Pretendemos montar uma equipe de economistas que tenham familiaridade com esse debate porque essas pessoas não têm tido voz na grande mídia. Também vamos convocar os economistas que sempre denunciaram o significado dessa brutal sangria para o pagamento de juros. Esperamos que essa CPI não seja para abafar nada, mas para esclarecer o público.
O que mais a CPI poderá revelar?
Quem lucra, quem ganha com essa ciranda financeira? É algo que vamos aprofundar. O Banco Central precisa informar quem são os maiores detentores de títulos da dívida. O ex-ministro da Fazenda Pedro Malan gostava de dizer que esses fundos estavam nas mãos do povo. Temos informação de que mais da metade estão com os fundos de pensão e as grandes instituições financeiras. Na crise econômica, o governo tem recorrido à emissão de títulos públicos, o que é uma maneira de endividar ainda mais o país. Em vez disso, deveria fazer uma auditoria, suspender o pagamento dos juros e esticar o pagamento da dívida pública. Medidas que poupariam o Estado de brutal pagamento de juros a detentores de títulos da dívida.
Que proposta objetiva deve sair da CPI da Dívida Pública?
Esperamos concluir as atividades com a realização de uma auditoria da dívida pública brasileira. E, se houver pressão popular, com a suspensão temporária do pagamento de juros da dívida pública. Vamos ver a correlação de forças.
Mas isso é viável no Brasil?
O Equador está passando por um processo de auditoria da dívida externa. Eles conseguiram abater 70% da sua dívida externa, porque a maioria dos contratos era ilegal. Sobre a renegociação da dívida, o exemplo argentino de sete anos atrás é elucidativo. A Argentina simplesmente suspendeu o pagamento e renegociou o valor por um quarto. O mercado fez enorme terrorismo dizendo que o país tinha morrido para o capital financeiro. Três meses depois eles voltaram e renegociaram o valor da dívida por um quarto do valor de face dos títulos. A Argentina, que pagava até 16% em juros, baixou para 4%. Um fundo italiano, investindo na Itália, não ganha mais que 1%. Certamente, essas saídas serão atacadas pela hegemonia do capital financeiro.
Do site do Congresso em Foco