As práticas fisiologistas e nepotistas no Senado, que têm tomado conta do noticiário, suscitaram o debate em torno das funções da chamada Câmara Alta do legislativo brasileiro. O Senado brasileiro foi instituído pela Constituição de 1824, inspirado no Câmara dos Lordes inglesa e, posteriormente, com a República, espelhou-se no Senado dos EUA.
20/08/2009
Renato Godoy de Toledo
da Redação do Brasil de Fato
O papel desta casa, à princípio, é de revisar as propostas formuladas pela Câmara dos Deputados, para que a matéria seja enviada para a sanção do Executivo. Quando o executivo formula, a lei passa pela Câmara Baixa, onde recebe emendas, e posteriormente pela Alta. Enquanto a Câmara Federal tem bancadas estaduais proporcionais ao número de eleitores de cada unidade federativa, no Senado, cada estado tem três representantes. Teoricamente, esta casa asseguraria o pacto federativo, evitando uma tirania dos estados mais populosos.
No entanto, hoje o Senado já legisla e produz sua própria agenda e, longe de assegurar o equilíbrio, a instituição tornou-se reduto das oligarquias que têm na casa uma sobrerrepresentação. Em meio a essa crise, alguns setores defendem o fim do Senado, incluindo membros do governo.
Em entrevista ao Brasil de Fato, o sociólogo Rudá Ricci, do instituto Cultiva.
Brasil de Fato -Sarney é um homem com décadas de vida pública. Na sua opinião, porque somente agora ele tornou-se o inimigo público número 1?
Rudá Ricci – Sarney é um homem que sempre trabalhou discretamente, nos bastidores da política. A exceção foi justamente a sua posse como Presidente da República, num acordo que Tancredo Neves havia forjado para se eleger no colégio eleitoral. Foi oficial judiciário e, em 54 foi eleito quarto suplente de senador pelo Maranhão, pelo PSD, com pouco mais de 3 mil votos.
Foi deputado federal por períodos muito curtos, durante todo o período “vitoriinista” (1956-1966), em que a política maranhense era absolutamente dominada pelo senador Vitorino Freire. Por este motivo, rompeu com o PSD (partido de Vitorino Freire) e ingressou na UDN. Na UDN, participou discretamente do movimento renovador deste partido, a “Bossa Nova”, vinculada à Jânio Quadros. Era início dos anos 60. Já é possível perceber uma participação menor num momento de grande efervescência da política nacional, embora adotasse cores e discursos mais populares no interior da UDN. O mais interessante é que se tornou governador do Maranhão em 65, com apoio do governo militar, embora tivesse grande popularidade (e não necessitasse de tal apoio). Os militares apoiavam a sua oposição a Vitorino Freire. Mais interessante ainda é que Sarney fez campanha contra a desonestidade do governador Newton Belo. Foi aí que se tornou o maior comandante da ARENA do Maranhão e foi projetando-se como um novo coronel do Estado. Mais tarde, adotaria o mesmo discurso moralista contra o governo Nunes Freire (meados dos anos 70). Interessante que desde então, defendeu o bipartidarismo como sistema que garantia a estabilidade política do país, embora sustentasse a necessidade de liberdade para criação de outros partidos. Em 78, foi contra a legalização do PCB.
O que quero chamar a atenção é a trajetória tortuosa de Sarney, oscilando entre o discurso e imagem populares e práticas de bastidor muito agressivas, de reconstrução do neo-coronelismo maranhense. O que ocorre neste momento são dois fenômenos que se somam: a) a renovação (e até debilidade parcial) dos coronéis e oligarquias regionais, o que pode significar a superação de Sarney na porção mais oriental do nordeste; b) a superexposição a partir de sua eleição à Presidência do Senado, em parte para sustentar o retorno de sua filha ao governo do Maranhão, apoiada em alianças com senadores já cassados ou que sofreram processos de cassação. Como todos fazem parte da base governista do Presidente Lula, obviamente que o ataque frontal à sua figura procura debelar a liderança lulista ou, ao menos, provocar seu apoio público à tropa de choque de Sarney.
A saída dele do cargo resolveria a crise ou seria uma maneira de tirar o foco sobre o Senado?
Resolveria em parte porque aliviaria a pressão sobre o governo federal e sobre a bancada do PT no Senado. Seria uma solução conjuntural, momentânea. Mesmo porque, a cassação de Sarney renderia uma forte reação da tropa de choque que o apoia no Senado e, talvez, de parte do PMDB, colocando em risco a coalizão presidencialista. Para nós, cidadão, contudo, a solução não seria esta. Defendo o fim do sistema bicameral. O melhor seria um sistema unicameral, como existe em tantos países do mundo. O Senado brasileiro nunca foi instrumento de equilíbrio federativo, como alguns poucos propalam. Pelo contrário. Foi sempre instrumento das oligarquias regionais, com raras exceções. O pacote de abril, que criou a figura do senador biônico, piorou ainda mais este desequilíbrio representativo. Mais: o senado brasileiro custa muito aos brasileiros (agora sabemos os motivos, justamente porque atende às oligarquias regionais). O salário total é de 117 mil reais mensais (incluindo salário, 13o, 14o e 15o salários, verba indenizatória para alimentação/segurança/combustível, auxílio moradia, cota postal, vale transporte aéreo e verba de gabinete). O Senado gera tanto desequilíbrio político em nosso país que um senador pode se candidatar a um cargo executivo e, mesmo sendo recusado pelas urnas, voltar ao seu mandato.
Há um comprometimento entre as duas partes (governo e oposição)? As denúncias e punições tendem a ser amenas, para que não haja um comprometimento geral?
O comprometimento é óbvio. Trata-se da manutenção da coalizão presidencialista de Lula. Uma espécie de presidencialismo híbrido, que governa com uma coalizão partidária nos moldes do parlamentarismo. Movimentos sociais e organizações populares não participam desta lógica. Apenas negociam programas e recursos. Mas não governam, não participam do processo decisório.
A bandeira do Fora Sarney é um fim em si mesmo? Quem deve substituí-lo não tem uma ficha como a do ex-presidente?
A substituição teria mais efeito sobre o Maranhão que sobre o Senado ou a mudança da política nacional. Poderia dar fôlego à oposição ao governo Lula, principalmente PSDB e DEM, já que PSOL e PV aparecem como coadjuvantes. O problema é a existência do Senado. Se conseguíssemos avançar neste debate do sistema unicameral, poderíamos dar um passo na direção de um maior controle sobre o parlamento. Penso em criarmos estruturas de co-gestão como ocorre no executivo: conselhos de direitos e temáticos. Por qual motivo não temos conselhos na Câmara Federal e nas estruturas legislativas do país? Por qual motivo não se adota o orçamento participativo nos parlamentos brasileiros? O que nos faz concentrar este esforço de controle social no executivo?
Entrevista publicada originalmente pela Agência Brasil de Fato