Proposta fere princípios constitucionais e pode trazer sérias conseqüências para a educação pública. A laicidade do Estado foi defendida por debatedores de encontro realizado pela Ação Educativa. Confira.
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A proposta de acordo entre Brasil e Vaticano fere os princípios da laicidade estatal, da igualdade e da liberdade religiosa e pode trazer sérias conseqüências para a educação pública. O debate sobre a concordata é restrito, mesmo no Congresso Nacional, onde se encontra em tramitação. Há pouca informação a respeito do acordo, que pode ser votado a qualquer momento, por ter aprovado seu regime de urgência. Diante destas considerações, ativistas, parlamentares e estudiosos manifestaram, no último dia 17 de agosto, em debate na Ação Educativa (SP), posição contrária à proposta, assinada em 13 de novembro de 2008, no Vaticano, durante visita do Presidente Lula ao Papa Bento XVI.
“Foi um encontro importante para fortalecer o amplo e diverso movimento de crítica à sua proposta e tramitação, em particular pela ausência de informação sobre todo o processo, que tem se dado sem o devido debate plural e democrático”, afirma Salomão Ximenes, advogado e coordenador do programa Ação na Justiça, da Ação Educativa.
O relator da matéria, Chico Abreu (PR-GO), disse que o debate promovido pela organização foi apenas um dos momentos de escuta ampla que devem acontecer no processo de apreciação da matéria que pode contar, inclusive, com audiências públicas. “O dever do parlamentar é escutar. A sociedade brasileira deve enfrentar esta questão. A própria lei proíbe qualquer forma de proselitismo religioso. Este debate deve ser longo e cuidadoso”, afirmou Abreu. Ele se comprometeu a construir um relatório de forma democrática. “Não tenho posição. Não posso limitar o debate. Quero ouvir os segmentos religiosos, educacionais e constitucionalistas e fazer meu trabalho com transparência. Gostaria de construir um relatório que não fira nenhum princípio fundamental da sociedade brasileira”, disse Abreu.
“Este acordo é a oficialização de interesses e práticas políticas históricos da igreja católica na América Latina”, pontua Dulce Xavier, socióloga e feminista, integrante da ONG Católicas Pelo Direito de Decidir. “A igreja tem um discurso forte e radical para defender outros temas. Por que não defendeu este acordo com a mesma ênfase? Ela usa um discurso em defesa da vida para escamotear seus verdadeiros interesses, majoritariamente de ordem econômica. Ela teve um cuidado expresso de não trazer este debate para a sociedade”, afirma Dulce, que sublinha também o crescimento de setores conservadores dentro da Igreja.
Cheque em branco para o Vaticano
O deputado federal Ivan Valente (PSOL-SP), titular da Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional foi um dos responsáveis por alguma ampliação deste debate. Por requerimento de Valente, a matéria tramita não apenas nesta comissão (onde foi aprovada no último dia 12 de agosto), mas também nas comissões de educação, cultura e trabalho. “Entre 80% e 90% dos parlamentares não conhecem o acordo e os que estão discutindo insistem em afirmar que ele é uma reafirmação do que já existe. Muito pelo contrário, ele deixa brechas que são verdadeiros cheques em branco do Estado brasileiro ao vaticano”, afirma Valente.
Para Roberto Franklin Leão, presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), este debate tem duas vertentes: uma de método e uma que diz respeito diretamente à educação. Em relação ao método, ele critica: “O processo de discussão não existiu e a sociedade brasileira foi excluída”. Em relação à educação, ele afirma: “o acordo é um retrocesso. A escola é um espaço laico e deve respeitar as diferenças e não pode ser espaço de doutrinação”.
Valente explica que o acordo entre um Estado teocrático e um Estado democrático, de natureza religiosa, é diferentemente de outros acordos com Estados teocráticos, como o Irã, Israel ou Arábia Saudita. “A Santa Sé é um Estado e uma religião”, pondera Valente. “Além disso, a religião é do lugar do privado. A escola é do lugar do público. A diversidade religiosa está garantida na Constituição. A proclamação da república e o decreto que define o Estado como laico estão em vigor. Não se pode dar um jeitinho brasileiro na laicidade do Estado”, critica o deputado.
A professora titular da Faculdade de Educação da USP, Roseli Fischmann, ressalta que outras leis que estabeleciam disciplinas já foram rechaçadas pelo Congresso, a partir da avaliação de que a casa não legisla sobre esta matéria, que seria atribuição do MEC e das escolas. “Para termos uma idéia, Hitler, Mussolini, Franco e Salazar assinaram concordatas com o Vaticano. Da forma como está no documento, algo que não é obrigatório passará a ser, por um Tratado Internacional”, afirma a professora.
“Quando se diz que o acordo não traz nada de novo, não é verdade. O artigo 33 da LDB diz que a oferta de ensino religioso nas escolas públicas é obrigatória e fica vedado o proselitismo, mas a disciplina é facultativa. O artigo 11 do acordo já especifica: ‘o ensino religioso, católico e de outras confissões’… o que vale? O acordo ou a LDB?”, questiona Valente.
Ximenes explica que um tratado pode ser considerado superior a uma lei nacional. “Um Tratado Internacional não é uma alteração simples de lei. Sua aprovação traz implicações severas ao Estado Brasileiro. Estamos minimizando os impactos que este acordo pode trazer para a vida cotidiana dos brasileiros”.
Valente lembra que para reverter um acordo, não basta que uma das partes esteja descontente. Um novo acordo deve ser assinado. “E o crucial é que há trechos neste acordo que podem ser conflitantes com os direitos civis dos brasileiros, como é o caso do divórcio e dos direitos trabalhistas. Além disso, há trechos que permitem interpretação de que o Estado brasileiro deve financiar a preservação do patrimônio religioso”, alerta o deputado.
Laicidade não é anti-religião
O deputado Ivan Valente chama atenção para um fator importante. Quem paga as aulas de ensino religioso é o Estado. “E não há nenhum levantamento do que é ensinado numa classe de ensino religioso. A lei afirma que ele deve estar presente no ensino fundamental, e em oito estados brasileiros, ele é lecionado no ensino médio. E quem paga? O Estado. Nós, contribuintes. O Estado se obriga a ofertar, ainda que a matrícula seja facultativa”, afirma Ivan. Isso gera reação de outras matrizes religiosas, mas segundo Valente, este não deve ser o nó da questão. “Não precisamos nos alinhar a uma religião para achar isso um absurdo. Trata-se do direito de crer e não crer, da liberdade religiosa sem interferência do Estado e sem financiamento do Estado”, diz.
Na platéria, um militante da Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos questionou a ”impossibilidade de contemplar um ateu nas aulas de religião, independentemente da confissão adotada. Ateus e agnósticos já são estigmatizado pela sociedade, e isso só vai piorar com o acordo”.
A Constituição Brasileira veda a discriminação e a diferenciação de cidadãos. Ao escolher uma entre múltiplas matrizes religiosas, o Estado está afirmando uma religião preferencial. E isso diferencia os demais. A afirmaçã
o da professora Roseli vem para afirmar que “a idéia de democracia como maioria é uma ignorância política”. Para a professora, a democracia tem uma série de exceções à regra da maioria e não se pode fazer nada que impeça uma minoria de virar maioria um dia, porque é assim que se instala a tirania. “Quem luta por um Estado laico não é anti-igreja católica nem anti-religião. O que cria esta confusão é justamente esta lógica da maioria, que transforma a escola em espaço de conflito, confronto, desinformação e constrangimento”, diz Roseli.
Dulce concorda com a professora e afirma que mesmo dentro da igreja católica há vozes dissonantes. “Apesar de o Vaticano pregar um discurso de unidade, existem visões de resistência dentro da igreja católica. Podemos nos mobilizar para retirar este projeto de tramitação e grupos de dentro da igreja católica poderiam nos apoiar”, diz.
Ximenes pondera que “ter uma posição crítica ao acordo e afirmar a laicidade do Estado não significa negar ou ser contra as religiões. Muito pelo contrário. É afirmar o direito de todos de ter a sua própria crença ou de não ter crença alguma. Isso com absoluto respeito a todas elas e afirmando a não interferência do Estado em relação às diferentes matrizes”.
Para Leão, isso não quer dizer que a religião não possa ser tratada como matéria de estudo em seu sentido antropológico, sociológico, histórico ou filosófico. “Mas uma disciplina de ensino religioso é ilegítima, por isso, este acordo deve ser rejeitado”, diz o presidente das CNTE.
Retirada da proposta
Ativistas, parlamentares e acadêmicos foram unânimes na sugestão de retirada de tramitação da proposta de acordo. “A questão do ensino religioso deve ser discutida como uma lei ordinária. Isso tira o peso de um tratado internacional e regula a matéria”, sugere a professora Roseli, lembrando que a Sociedade Brasileira pelo Progresso da Ciência (SBPC) em seu último congresso, realizado em Manaus, aprovou uma moção pelo pedido de retirada da proposta.
A professora provocou a CNTE a propor uma Proposta de Emenda Constitucional pela Escola Laica, via projeto de iniciativa popular. “A melhor maneira de resolver isso é não tendo ensino religioso. Este acordo tem que ser rejeitado”, afirmou Leão, da CNTE.
Valente lembrou a reforma educacional na Venezuela, aprovada esta semana, afirmando o Estado laico e acabando com o ensino religioso. “Aqui, os deputados têm receio de debater esta questão. Cada um tem a sua religião. Mas não se trata disso. Trata-se de um debate sobre a escola pública, a república, a liberdade religiosa, o direito de escolha e como isso forma os cidadãos. O que forma os cidadãos não é o ensino religioso. É a educação para a cidadania e a igualdade de condições”, afirmou.
“A sociedade não precisa de padrões morais e não é a igreja católica que pode fornecê-los. Logo ela, que não faz o que diz e julga com suas próprias leis criminosos como pedófilos. Ela não está preocupada com a qualidade da fé, mas em manter e expandir privilégios que conquistou historicamente”, afirma Dulce. Ela afirma ainda que o poder conquistado pela Igreja impede que muitos políticos batam de frente com ela, por mesmo de perder votos. “A Igreja chega a fazer listas de vereadores ou deputados que defendem o aborto, pedindo que não se vote neles. É esse poder que eles querem defender”, acrescenta a militante.
Ximenes lembra que o Conselho Nacional de Educação emitiu parecer em 1997 sobre o assunto, reafirmando que não cabe ao Estado estabelecer conteúdo para o Ensino Religioso, e que é inconstitucional o Estado aplicar recursos públicos nessa modalidade de ensino. Ele afirma a necessidade de ampliação do debate através de audiências públicas e de novos encontros para formação de massa crítica.
Para acompanhar a tramitação oficial da Concordata entre o Brasil e a Santa Sé no Congresso Nacional, acesse: http://www2.camara.gov.br/internet/proposicoes
(procure Mensagem n° 134/2006).
O que é uma concordata?
Concordata é o nome que se dá aos acordos assinados pela Santa Sé, órgão máximo da Igreja Católica Apostólica Romana, com o governo de qualquer país. Devido ao caráter jurídico peculiar da Santa Sé, esses acordos têm status de tratado internacional do tipo acordo bilateral. No Brasil, acordos internacionais são assinados pelo Presidente da República e dependem de posterior aprovação do Congresso Nacional (Constituição, art.84, VIII). Uma vez aprovados, esses acordos têm força de lei e são incorporados à vida nacional. E, o que é especialmente importante, pelas normas internacionais, não podem ser desfeitos nem alterados por apenas um dos lados.
Do site da Ação Educativa