Com pobreza comparável talvez apenas à Bolívia na América Latina, a Nicarágua retoma um processo de mobilização na tentativa de reverter seu quadro social. Para entendermos o governo sandinista que se estabeleceu neste país há 2 anos é preciso remontarmos o processo revolucionário ocorrido no final da década de 70. A Revolução Sandinista se instala na Nicarágua em 1978 pela luta armada da FSLN (Frente Sandinista de Libertação Nacional). A frente recupera o nome Augusto César Sandino, líder nicaragüense da luta contra a ocupação do exército dos Estados Unidos no país, que foi morto em emboscada em 1934.
A vitoriosa revolução realiza grandes feitos como o de reduzir em 2 anos o índice de analfabetismo de 50% para 13% da população e, como toda revolução social, tem prontamente uma reação contra revolucionária orquestrada pelo império norte americano. Em 1981 Ronald Reagan impõe o bloqueio econômico ao país e começa a financiar grupos anti-sandinistas, 3 anos depois se realizam eleições e o sandinista Daniel Ortega as vence com ampla margem de votos. O Bloqueio econômico segue mesmo depois do Congresso Americano desautorizar a ação em 1985. Em 1990 Violeta Barrios da contra (como era conhecida a oposição sandinista) ganha as eleições, abrindo um período de 16 anos com os sandinistas fora do poder central.
O governo de Violeta Barrios não foi diferente dos governos latino-americanos responsáveis por implantar o neo-liberalismo no continente, com a diferencia de possuir requintes de subserviência em alto grau. Quando assume a presidência em 90, Violeta Barrios desobriga os EUA de pagar à Nicarágua 17 bilhões de dólares em que foi condenado, pela Corte Internacional de Justiça de Haya, por promover uma guerra de agressão ao país durante a Revolução Sandinista.
Há 2 anos esse período termina ao ser eleito novamente Daniel Ortega Presidente da Nicarágua. Pode-se dizer que a Revolução Sandinista começava o seu segundo ato. Na batalha eleitoral a organização contra revolucionária também se faz presente, mas em vez da promoção de milícias armadas, agora serão os veículos de comunicação de massa que estarão na linha de frente de um processo de desestabilização nacional. O Jornal La Prensa, da qual Violeta Barrios é sócia, não poderia ser mais direto e publicava em seus editorias, durante as últimas eleições municipais, a palavra de ordem “Todos contra Ortega”. A batalha midiática contudo não elimina totalmente a atuação de milícias no país. O CANAL 4 estatal recebe vários atentados dos grupos de oposição obrigando o governo a deslocar todo o acervo histórico da TV para lugar sigiloso, de forma a impedir sua destruição.
A principal bandeira levantada na retomada do processo revolucionário parece ser a do fortalecimento das formas de democracia participativa ou protagonista. Talvez por não existir reeleição presidencial na Nicarágua esse tema ganhe maior densidade neste momento. A participação popular não é um tema novo para a esquerda na América Latina. No Brasil cidades como Belém e Porto Alegre desenvolveram experiências marcantes de democracia direta. A Venezuela, a partir dos círculos bolivarianos, também consegue manter na ordem do dia a marca chavista “todo poder para el pueblo”.
As eleições municipais nicaragüenses deste ano foram fortemente marcadas por esse debate e os sandinistas com a marca “2008 año del poder ciudadano” conquistaram 105 prefeituras contra 37 da oposição. Isso coloca a Nicarágua em um patamar inédito para o desenvolvimento do tema, pois pela primeira vez o Governo federal e dois terços das cidades do país trabalharam juntos no fortalecimento dos instrumentos de democracia direta.
A companheira de vida de Ortega, Secretária Executiva do Conselho Nacional de Planejamento e Economia Social (Conpes) e Coordenadora do Conselho de Comunicação e Cidadania, Rosário Murillo, no Primeiro encontro de Prefeitos, Vice prefeitos e Conselheiros eleitos do Poder Cidadão realizado em 29 de novembro na Casa de los Pueblos registra em sua fala o momento político que se coloca:
“Ellos estuvieron claros en todo momento, de que les era imposible ganar la mayoría de las Alcaldías, porque aquí hay continuidad de un Proceso Revolucionario que dejó sembradas semillas de democracia, de dignidad y libertad. Y que ha habido un Gobierno Nacional y Gobiernos Locales que se han ido articulando alrededor de este Nuevo Modelo de Democracia Directa, y que han logrado llevar a las familias y a las comunidades mejoría en sus vidas, en un proceso que nosotros vemos vinculado directamente a los Programas Sociales que hemos desarrollado, a lo largo de estos 22 meses de gestión.”
Rosário, que parece ser a sucessora natural de Ortega em um próximo governo, além da participação popular, capitania outra forte marca deste segundo ato na promoção da igualdade entre os gêneros – no governo sandinista se estabeleceu que 50% dos cargos devem ser ocupados por mulheres. Entretanto, esse aparente feminismo institucionalizado pode ser na verdade uma tentativa de recuperar a autoridade moral sobre o tema, moral esta abalada pelo giro estabelecido no processo eleitoral.
Se por um lado as mulheres ganharam mais espaço no governo revolucionário, por outro algumas bandeiras históricas do movimento feminista foram abandonadas na disputa de poder no país. O aborto terapêutico, que era uma prática que vinha se realizando livremente na Nicarágua desde 1893, foi suspensa pelo governo conservador de Enrique Bolaños em 2006. A FSLN, que antes defendia a legalidade do aborto, faz um giro radical condenando a prática para que conseguisse ganhar as eleições de 2006.
Se por um lado, os contornos do processo nicaragüense parecem desenhar um caminho de mudanças profundas, que se assemelham mais ao que ocorre em países como a Venezuela, Equador, Paraguai e Bolívia do que ao gerenciamento da macro-política econômica como faz o Brasil, por outro, as concessões eleitorais que promoveram um considerável racha na frente sandinista apontam semelhanças do governo de Ortega com o de Luiz Inácio. Talvez a mais clara demonstração da direção a qual se pretende levar o país seja observada no ingresso da Nicarágua na ALBA (Alternativa Bolivariana para as Américas). O ex-guerrilheiro Daniel Ortega fala sobre os novos fronts de batalha revolucionários ao se pronunciar na III Cumbre Extraordinaria de la ALBA:
“Estamos debatiendo estos temas cuando también estamos librando batallas electorales en nuestros países, en esta región, en este Continente; batallas electorales en Bolivia, en Ecuador, en Venezuela, en Nicaragua. Son batallas electorales donde realmente lo que está en juego, no es simplemente el Gobierno para ver quien administra el sistema, quien administra el modelo, sino lo que está en juego es el cambio, la transformación, entonces, son batallas Revolución y Contrarrevolución.
No son unas simples elecciones las que se llevan a cabo en nuestros países, son elecciones donde, si bien es cierto estamos utilizando el mecanismo que instaló el capitalismo para tratar de mantener eternamente su dominio, estamos utilizando ese instrumento para librar la batalla por la vía pacífica no por la vía de las armas.”
Se os nicaragüenses tem muitos motivos para comemorar o ano de 2008, provavelmente terão muitos mais para fazer o mesmo em 2009. Segundo Rosário Murillo, 2009 não será um ano de comemorações exclusivamente sandinistas, conclui:
“…empezar desde ya a programar el año 2009, Año del 30 Aniversario del Triunfo del Pueblo de Nicaragua con la Revolución Popular Sandinista.
Y en el año 2009, se cumplen 50 años de la Gloriosa Revolución Cubana; 10 años de la Revolución Bolivariana, y en el año 2009, también es posible, y Dios lo debe querer así, que los hermanos salvadoreños alcancen el Gobierno y, el pueblo de Farabundo Martí también viva su propio proceso de empoderamiento, de crecimiento democrático, de desarrollo en libertad. Ya llevamos 30 años de Revolución, ¡a mucho orgullo, a mucha honra! Por lo tanto, tenemos que estar a la altura de esos 30 años de vida, que vamos a estar celebrando en julio, con un plan de trabajo extraordinario, que recoja y active la realización de todos los desafíos endientes, y que, sobre todo, apele a la conciencia, para fortalecernos y fortalecer esta Revolución, que es de todos.”
Em janeiro deste ano Cuba comemorou 50 anos de sua revolução socialista, em fevereiro os bolivarianos comemoraram mais uma vitória em referendo popular na Venezuela, em março El Salvador comemora a eleição de seu primeiro governo de esquerda e os bolivianos a aprovação da sua primeira Constituição Política por voto direto.
Oxalá a América Latina siga em festa.
Pedro Ekman é arquiteto e Secretário Geral do Diretório Municipal do PSOL.