Por Jorge Majfud
Esta entrevista é o resultado de uma conversa entre dois amigos, ambos escritores uruguaios de espírito crítico e comprometido. Jorge Majfud, professor de literatura latino-americana da Lincoln University, conversa com Eduardo Galeano, uma das personalidades mais destacadas da literatura latino-americana. A partir do cotidiano, falam do passado, do presente e do futuro. Um olhar reflexivo para construir outro mundo possível.
A entrevista foi publicada no sítio de Jorge Majfud (majfud.info), em novembro de 2008. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
I. Passado
Jorge Majfud – Uma visão humanista considera a história como um produto humano, isto é, produto da liberdade de seus indivíduos e dos diversos grupos que a realizaram e interpretaram. Uma visão anti-humanista afirma que, pelo contrário, esses indivíduos e esses grupos são o resultado da própria história, e a sua liberdade é uma ilusão. Se você me permite uma limitação artificial dentro desse possível espectro, onde você estaria?
Eduardo Galeano – Pelo que eu tenho caminhado e ouvido, fico com a impressão de que nós fazemos a história que nos faz. Quando a história que fazemos nos sai deturpada, ou é usurpada pelos poucos que mandam entre nós, dizemos que ela, a história, é a culpada.
Nesta visão, não há lugar para o determinismo materialista ou para algum tipo de fatalismo religioso…
Os fatalismos são confortáveis, permitem-lhe dormir estirado, o destino está escrito nas estrelas, a história caminha por si só, não se preocupe, é preciso aceitar ou aceitar. Os fatalismos mentem, porque, se a vida é uma aventura da liberdade, que alguém venha e me explique se vale a pena viver. Mas cuidado: os iluminados também mentem, os escolhidos que se atribuem o poder de mudar a realidade, tocando-a com sua varinha mágica: e se a realidade não me obedece, ela não me merece.
Se o tempo de revoluções modernas, isto, das revoluções abruptas e violentas já passou, a progressão ou a resistência são a melhor alternativa no nosso tempo?
Como saber quantos mundos existem dentro do mundo, e quantos tempos dentro do tempo? A história caminha com as nossas pernas, mas, às vezes, anda em um passo muito lento e, às vezes, parece quieta. De qualquer forma, quando as mudanças vêm de baixo, do fundo, a curto ou a longo prazo eles encontram seu caminho, o ritmo que querem ou podem. A partir de baixo, digo, do pé, como cantou Zitarrosa. A única coisa que é feita desde cima são os poços.
Em seu último livro “Espelhos” (L&PM, 2009), você faz um esforço ao mesmo tempo criativo e arqueológico sobre um vasto espaço geográfico e temporal. Que períodos da história você acha que levariam o prêmio principal de crueldade e injustiça?
Há muitos favoritos nesse campeonato.
Bem, mais pontual, poderia resumir a crueldade em uma imagem, em uma situação que você viveu?
Eu pensei nisso anos atrás, em um caminhão que atravessava a selva do alto Paraná. Exceto eu, todas as pessoas eram desse mapa. Ninguém falava. Íamos muito apertados na carroceria do caminhão, aos tombos. Ao meu lado, uma mulher muito pobre, com um bebê nos braços. O bebê ardia em febre, se queixava. Ela só disse que precisava de um médico, que em algum lugar tinha que haver um médico. E finalmente chegamos a algum lugar, não sei quantas horas haviam passado, há muito tempo o bebê não se queixava. Ajudei a mulher a descer do caminhão. Quando peguei o bebê, vi que estava morto. O assassino que tinha cometido essa crueldade era todo um sistema de poder, que não ia preso nem viajava em caminhões desengonçados.
Com memórias como essa, deveríamos terminar aqui. Mas o mundo continua girando. Você acha que o passado pré-colombiano sobreviveu tantos anos de colonização e modernização, de modo a definir uma forma latino-americana de ser, de sentir e até de pensar?
Há séculos, os deuses acodem, quem sabe como, a partir do passado americano e da selva africana e de todas as partes. Muitos desses deuses viajam com outros nomes e usam passaportes falsos, porque as suas religiões são chamadas de superstições, e eles continuam sendo condenados à clandestinidade.
II. Presente
Estamos presenciando o fim do capitalismo, de um paradigma baseado no consumismo e no êxito financeiro, ou trata-se simplesmente de uma crise a mais, da qual o próprio sistema, a própria cultura hegemônica sairão fortalecidos?
Às vezes, recebo convites para assistir ao enterro do capitalismo. Bem sabemos, no entanto, que ele viverá mais do que sete vidas, esse sistema privatiza seus ganhos, mas tem a amabilidade de socializar seus prejuízos, e, como se fosse pouco, convence-nos de que isso é filantropia. Em grande medida, o capitalismo se nutre do descrédito de suas alternativas. A palavra socialismo, por exemplo, foi esvaziada de significado pela burocracia que a utilizou em nome do povo e pela socialdemocracia que, em seu nome, modernizou o “look” do capitalismo. Sabemos que esse sistema capitalista está se virando muito bem para sobreviver às catástrofes que desencadeia. Não sabemos, porém, quantas vidas a sua vítima principal, o planeta que habitamos, espremido até a última gota, poderá viver. Para onde nos mudaremos quando o planeta ficar sem água, sem terra, sem ar? A empresa Lunar Internacional já está vendendo lotes na Lua. No fim de 2008, o multibilionário russo Roman Abramovich deu um terreninho para sua noiva.
Talvez ele acredite ser o primeiro homem que deu um pedaço da Lua para uma mulher, o que vem a ser uma espécie de capitalismo romântico. Você acha que, se a China, por exemplo, tivesse uma economia hegemônica, logo se converteria em um novo império, avassalador e colonialista, como qualquer outro império?
Se eu fosse um profeta profissional, morreria de fome. Não acerto nem no futebol, porque disso sim eu sei alguma coisa. Tudo o que posso lhe dizer é o que eu posso ver: a China está colocando em prática uma exitosa combinação de ditadura, no velho estilo comunista, com uma economia que funciona ao serviço do mercado mundial capitalista. A China pode proporcionar, assim, uma baratíssima mão-de-obra para empresas norte-americanas como o Wal Mart, que proíbe os sindicatos.
A propósito, no último “black Friday”, o dia do ano em que, nos Estados Unidos, as grandes cadeias de supermercados vendem a preço de custo, uma avalanche de compradores não pôde esperar as portas de um destes Wal Marts abrirem e passou por cima de um empregado. O homem morreu esmagado… Apesar de todo esse absurdo, podemos pensar que a humanidade está em um estado mais elevado de direitos individuais e de consciência coletiva? Qual é a melhor coisa do nosso tempo?
No século XX, a justiça foi sacrificada em nome da liberdade, e a liberdade foi sacrificada em nome da justiça. Já o nosso tempo é o século XXI, e a melhor coisa que ele tem é o desafio que ele contém: ele nos convida a lutar para ajudar no reencontro da justiça e da liberdade. Elas querem viver bem coladinhas, uma de costas para a outra.
Podemos comparar a aparição da Internet com a revolução que a imprensa produziu no século XV?
Não tenho nem idéia, mas aproveito a ocasião para lembrar que a impressão não nasceu no século XV. Os chineses a tinham inventado dois séculos antes. Na verdade, eram chinesas as três invenções que tornaram possível o Renascimento europeu: a imprensa, a bússola e a pólvora. Não sei se agora a educação melhorou, mas antes aprendíamos uma história universal reduzida à história da Europa. Do Oriente Médio, nada ou quase nada. Nem uma palavra sobre a China, nada sobre a Índia. E da África só sabíamos aquilo que nos ensinava o professor Tarzan, que nunca esteve lá.
E do passado norte-americano, do mundo pré-colombiano, alguma coisa folclórica, , algumas quantas penas coloridas… e deu.
Qual é o maior perigo do progresso tecnológico na comunicação?
Na comunicação e em todo o resto. As máquinas não são nenhumas santas, mas não têm a culpa por aquilo que nós fazemos com elas. O maior perigo é que o computador nos programe, assim como o carro nos dirige. Com uma facilidade assombrosa, convertemo-nos em instrumentos de nossos instrumentos.
Como escritor e como leitor, que tipo de leituras ocupam mais o seu tempo hoje?
Eu leio de tudo, começando pelas paredes que acompanham os meus passos pelas ruas das cidades.
A crueldade e a injustiça são o maior provocador da literatura de Eduardo Galeano?
Não. Se fosse assim, eu já teria adoecido de irremediável tristeza. Felizmente, sou perguntador, curioso de nascimento, e ando sempre buscando a terceira margem do rio, esse misterioso lugar onde se juntam o horror e o humor.
Por que você acha que o nosso tempo será lembrado nos séculos por vir?
Será lembrado? Haverá séculos por vir? Deus lhe ouça, e se Deus está surdo, que o Diabo te ouça.
III. Futuro
Eduardo, você acha que o mundo vai se dirigir para um maior equilíbrio de suas frações geográficas, sociais e culturais, ou, pelo contrário, estamos condenados a repetir as mesmas formas do que hoje entendemos como violência física e moral?
Condenados não estamos. O destino é um desafio, embora, à primeira vista, pareça uma maldição.
Uma melhoria do nosso presente está radicada em grande parte no aprofundamento dos valores humanos da tradição europeia ou em uma revalorização de uma origem perdida nos povos “periféricos”?
A tradição europeia não é suficiente. Nós, os americanos, somos filhos de muitas mães. A Europa, sim, mas também existem outras mães. E não só os americanos. Os humanozinhos todos, o mundo inteiro é muito mais do que aquilo que acredita ser. Mas o arco-íris terrestre não brilhará, com toda a sua luz, enquanto ele continuar sendo mutilado pelo racismo, pelo machismo, pelo militarismo, pelo elitismo e por todos esses “ismos” que negam a plenitude da nossa diversidade. E, a propósito, não faz mal esclarecer que os valores humanistas da tradição europeia se desenvolveram enquanto a Europa exterminava índios na América e vendia carne humana na África. John Locke, o filósofo da liberdade, era acionista de uma empresa negreira.
Sim, algo assim como as democracias imperiais, desde a antiga Atenas até os Estados Unidos. Mas isso significa que a história sempre se repete?
Ela não quer se repetir, ela não gosta disso nem um pouquinho, mas muito frequentemente nós a obrigamos. Para lhe dar um exemplo muito atual, há partidos que chegam ao governo prometendo um programa de esquerda e acabam repetindo o que a direita fazia. Por que não deixam que a direita continue fazendo, já que tem experiência? A história se cansa e a democracia é desacreditada quando somos convidados a escolher entre o mesmo e o mesmo.
Que papel desempenham os intelectuais “não-orgânicos” na sociedade hoje? Continuam sendo, pelo menos em uma minoria, uma força crítica e provocadora?
Eu acho que escrever não é uma paixão inútil. Mas essa generalização, os “intelectuais”, orgânicos ou não orgânicos, não se parece muito com o mundo real. Existe de tudo na vinha do Senhor. No meu caso, posso lhe dizer que eu trabalho com palavras, que sou um inútil total e que isso é a única coisa que eu faço mais ou menos bem, e que eu sei, por experiência própria e alheia, que o ato da leitura é uma secreta, e às vezes fecunda, cerimônia de comunhão. Quem lê algo que vale a pena de verdade não o lê impunemente. Ler um livro desses que respiram quando você coloca o ouvido sobre ele não lhe deixa intocado: ele lhe modifica, mesmo que um pouquinho, lhe incorpora alguma coisa, algo que você não sabia ou não imaginava, e lhe convida a buscar, a perguntar. E ainda mais: às vezes, até pode lhe ajudar a descobrir o verdadeiro significado das palavras traídas pelo dicionário do nosso tempo. Que mais uma consciência crítica pode querer?
Mas os escritores contemporâneos tendem a evitar essa palavra, “intelectuais”. Por quê?
Eu lhe respondo por mim mesmo, não em nome “dos escritores”, que também são uma generalização duvidosa. Eu escrevo querendo dizer e me dizer em uma linguagem sentipensante, palavra certeira que os pescadores da costa colombiana do mar do Caribe me ensinaram. E por isso, justamente por isso, não gosto nada que me chamem de intelectual. Sinto que me convertem assim em uma cabeça sem um corpo, situação demasiadamente incômoda, e que estão divorciando minha razão da emoção. Supõe-se que o intelectual é aquele que é capaz de entender, mas eu prefiro aquele que é capaz de compreender. Culto não é quem acumula mais conhecimentos, porque então não haverá ninguém mais culto do que um computador. Culto é aquele que sabe escutar, escutar os outros e escutar as mil e uma vozes da natureza de que fazemos parte. Para dizer, escuto. Eu escrevo em uma viagem de ida e volta, recolho palavras que devolvo, ditas do meu modo e da minha maneira, ao mundo de onde vêm.
Aliás, qual é a sua técnica narrativa, ou seja, seus hábitos e condutas de escrita?
Não tenho horários. Não me obrigo. Em Santiago de Cuba, um velho tamborero, que tocava como os deuses, me ensinou: “Eu toco – me disse – quando minha mão coça”. E eu faço o que ele disse. Se não me coça, eu não escrevo. Nunca assinei um contrato que me coloque prazos para entregar um livro. Na literatura, assim como no futebol, quando o prazer se converte em dever, passa a ser algo muito parecido ao trabalho escravo. Os livros me escrevem, crescem dentro de mim, e a cada noite vou dormir agradecendo-os, porque permitem que eu acredite que o autor sou eu. E, dito isso, esclareço que eu escrevo cada página muitas vezes, que eu rasuro, suprimo, reescrevo, quebro, volto a começar, e tudo isso faz parte da grande alegria de sentir que o que eu digo é parecido, e às vezes é muito parecido, com aquilo que as minhas páginas querem dizer.
Seus livros, depois as ditaduras militares do Uruguai e da Argentina, depois do exílio, mudam de estilo. Ou talvez aprofundam uma característica: seu olhar continua sendo o do rebelde conformista, mas a sua voz se torna mais lírica. Se bem me lembro, foi Jean-Paul Sartre que disse que a técnica escritor se refere à sua concepção do mundo. Como você definiria o seu estilo? Ele reflete a sua percepção do mundo, ou talvez suas aspirações sobre ele, ou o estilo é algo acidental, uma forma de fazer as coisas que provém de uma história da estética, de uma influência da adolescência?
Meu estilo é o resultado de muitos anos de escrever e apagar. Juan Rulfo me dizia isso, mostrando um lápis daqueles que quase não se veem agora: “Eu escrevo com a ponta da frente, mas escrevo mais com a parte de trás, onde está a borracha”. Eu faço isso, ou tento fazer. Tento dizer cada vez mais com cada vez menos.
Um elemento comum da literatura do compromisso, das utopias revolucionárias até os anos 60, os anos antes das ditaduras na América do Sul, parece ser a alegria. Como exemplo ilustrativo, poderíamos fazer uma exposição de fotografias dos rostos mal-humorados dos Pinochet, por um lado, e dos rostos sorridentes dos Che Guevara, por outro. Existe uma ligação entre a “estética da tristeza” da literatura do século XX e as forças conservadoras da sociedade? Em que medida a alegria, o epicurismo do qual falava Américo Vespúcio referindo-se a uma certa imagem dos americanos nativos, é subversiva?
Volto à costa colombiana, e lhe conto que, lá, o pior insulto é “amargao”. Não podem lhe dizer nada mais grave. E eles têm razão, porque, no fim das contas, não há nada no mundo que n
ão mereça ser rido. Se a literatura de denúncia não é, ao mesmo tempo, uma literatura da celebração, ela se afasta da vida viva e faz seus leitores dormir. Supõe-se que seus leitores devem arder de indignação, mas eles caem no sono. Muitas vezes, a literatura que diz se dirigir ao povo só se dirige aos convencidos. Sem risco nenhum, parece-se mais à masturbação do que ao ato de amor, mesmo que, como me disseram, o ato de amor é melhor, porque é possível conhecer mais pessoas. A contradição move a história, e a literatura que realmente estimula a energia de mudança nos ajuda a adivinhar os sóis secretos que cada noite esconde, essa façanha humana de rir contra toda evidência. A herança judaico-cristã, que tanto elogia a dor, não ajuda muito. Se bem me lembro, em toda a Bíblia não há nenhuma risada. O mundo é um vale de lágrimas, os que mais sofrem são os eleitos para subir ao Céu.
Como você imagina o mundo daqui a 50 anos?
Com a idade que tenho, imagino que dentro de 50 anos eu já não vou estar. Como você vê, tenho uma imaginação prodigiosa.
Onetti já disse que ele escrevia para si próprio. Galeano escreveria se tivesse a pouca sorte de ser o único sobrevivente de uma catástrofe global?
O único sobrevivente? Ai! Eu morreria de tédio. Talvez escreveria da mesma forma, porque tenho o vício, mas escrever para ninguém é pior do que dançar com a irmã. Onetti ficou bravo comigo quando, uma noite, cometi uma insolência juvenil. Ele me disse isso, que ele escrevia para ele, e eu lhe propus que levaria ao correio essas cartas para Juan Carlos Onetti, Rua Gonzalo Ramirez, Montevidéu etc., etc. Ele se zangou. Zangou-se porque mentia, e sabia disso. Quem publica o que escreve, escreve para os outros.
O que você faria de diferente se tivesse a experiência e a oportunidade de fazê-lo de novo? De que Eduardo Galeano se arrepende hoje?
Não me arrependo de nada. Eu também sou a soma de todas as vezes em que meti a pata.
(Envolverde/IHU – Instituto Humanitas Unisinos)