Por Flávio Aguiar
Não sei o que foi pior: ler sobre o golpe em Honduras, ou ler, nas seções de cartas da Folha de S. Paulo (deve haver em outros jornais também) na internete, leitores brasileiros justificando o golpe. Os argumentos centrais eram os mesmos de 1964 no Brasil: o presidente ia violar a Constituição, ia implantar uma ditadura de esquerda (pra esses leitores, ditadura de direita pode), ia virar um novo Hugo Chavez, ia, ia, ia. Só ia. Fato, nenhum. Ainda, de quebra, mais uma acusação, desta vez contra o governo brasileiro, que teria aplicado dois pesos e duas medidas ao não condenar a eleição no Irã e ao condenar o golpe em Honduras, como “mais uma prova” do “esquerdismo” da política externa brasileira.
Conceitualmente, nem vale a pena responder a esses argumentos, porque eles se desmentem por si próprios, pela sua incoerência, pela sua inconsistência, pela sua própria existência, enfim. Mas vale a pena recordar que argumentos desse naipe foram cantados em prosa e verso na nossa mídia brasileira e fora dela, em 1964. É o argumento do “ia”. Só pra recordar um pouco mais: historicamente esse argumento foi usado aqui na Alemanha para atenuar a culpa social-democrata pelo assassinato de Rosa Luxemburgo, de Karl Liebknecht, em 1919 e pela sangrenta repressão contra os trabalhadores exercida pelos para-militares dos Freikorps, que se tornaram um dos berços das futuras SS e SA. Eles (Rosa e Karl) “iam” implantar uma ditadura sangrenta, se eles chegassem ao poder a matança “ia” ser igual, só que para o outro lado, etc. Haja “ia”.
Outra semelhança com o Brasil de 64 foi o argumento do novo “presidente”, Roberto Micheletti, às pressas indicado pelo Congresso para legalizar o golpe. “Manuel Zelaya renunciou, então o cargo ficou vago”. Que argumento! Zelaya desmentiu a renúncia. Mas mesmo que tivesse renunciado, para salvar a própria vida e não virar um novo Allende, o ato seria juridicamente nulo, pois obtido sob evidente coação. É como se Pedro Carmona, o golpista venezuelano de 2002, dissesse: “Pois é, o palácio de Miraflores estava vazio, o presidente Hugo Chavez se fora, aí eu entrei e tomei posse”.
Em 1964 o Congresso, para legalizar o golpe, com o apoio de quase toda a mídia e muito mais, declarou a presidência vaga porque o presidente João Goulart “abandonara” a capital federal “sem autorização” do parlamento, e deu posse interina ao presidente da Câmara, Rainieri Mazzili. Também, que argumento notável! É a lógica do golpe: primeiro se dá o golpe, depois se busca alguma lógica que o justifique, para além de seus sórdidos interesses.
Algumas lembranças sobre Honduras. Na última metade do século XX o país abrigou uma série de operações militares de direita, organizadas/apoiadas/levadas a cabo pela CIA. Nos últimos 30 anos do século essas operações foram particularmente aprofundadas pelos governos republicanos. A partir de 1977 (quando Jimmy Carter era presidente e as operações da CIA estavam “congeladas”) instalou-se no país uma “operação Charly”, sob supervisão de militares argentinos ligados ao “Batalhão 601”, que, por sua vez, era diretamente ligado ao general Leopoldo Galtieri que, em 1981, assumiu a presidência com um “golpe dentro do golpe”. Os membros do “601” treinaram, em Honduras, o Batalhão 316, especializado em seqüestros, torturas, assassinatos e “desaparecimentos”. Honduras tornou-se, sobretudo em seu quartel de Lepaterique, um centro irradiador de ações militares anti-esquerdistas no próprio país e nos vizinhos, como em El Salvador e na Nicarágua. Essas operações também contaram com o apoio do governo de Pinochet, do Chile. A partir da posse de Reagan, em 1981, as operações desse tipo foram retomadas e aprofundadas. Nem mesmo a Guerra das Malvinas, em 1982, interrompeu essa “frutífera cooperação” entre a CIA e militares argentinos, ao que parece, durou pelo menos até 1984, e com as bênçãos do papa João Paulo II e o auxílio do embaixador John Negroponte, nomeado por Reagan para Tegucigalpa, que foi o cabeça-de-ponte de sua administração na América Central e depois foi indicado embaixador na ONU! O que colocou aquela colaboração na estante da história foi a restauração da democracia na Argentina, a partir de 1983.
Portanto, vê-se que o presente golpe em Honduras tem longas raízes. Não sei se os golpistas que invadiram a casa do presidente Zelaya foram ou são remanescentes do famigerado “316”, mas sem dúvida seu espírito ia com eles. O que os militares e os golpistas civis não souberam avaliar é que o mundo ao seu redor mudou bastante. A América Latina, a América Central, a América do Sul não são mais as mesmas. Nem mesmo a OEA e os Estados Unidos são os mesmos do ano passado. Já pensaram, caros leitores e leitoras, no que aconteceria se Bush filho e Rice pianista continuassem na Casa Branca?
Flávio Aguiar é correspondente internacional da Agência Carta Maior.