Fernando Filgueiras – Dezembro 2008
Ao que parece, a operação Satiagraha degenerou numa típica comédia pastelão. Com o objetivo de desmontar um dos maiores escândalos financeiros do Brasil, com ligações em diferentes ramos do setor econômico, a operação Satiagraha resultou em acusações mútuas entre órgãos do governo, com a Agência Brasileira de Inteligência e a Polícia Federal disparando farpas para todos os lados. Da mesma forma, Executivo e Judiciário terminaram trocando acusações de inépcia e inoperância no que diz respeito ao combate aos crimes financeiros no Brasil, tendo o presidente de nossa Corte Suprema ocupado o lugar central do teatro político recente, sem o distanciamento necessário para a sua postura de narrador imparcial da política.
Nem tão longe da memória está a operação Navalha e o modo como se tornou público o esquema para o superfaturamento de ambulâncias e obras públicas, que implicou a crescente tensão entre o governo e o Congresso Nacional. Um pouco mais longe da memória, mas ainda presente como um mal-estar coletivo, o mensalão estipulou a idéia de que não é possível governar sem que o partido vencedor promova algum tipo de corrupção para a formação de maioria no parlamento. Daí, como afirmou à época o deputado Roberto Jefferson, haver no governo “conversas republicanas e não republicanas”, sendo que as últimas, como se dá a entender, ocuparam e ocupam o cerne do debate político.
Dados da pesquisa realizada pelo Centro de Referência do Interesse Público (CRIP) da Universidade Federal de Minas Gerais dão conta de que a honestidade, no âmbito de nossa cultura política, é um conceito relativo e de que certa corrupção justifica-se para manter a estabilidade do governo. Em geral, 48% dos brasileiros concordam que a honestidade é relativa, dependendo da situação envolvida ou do personagem de quem se fala.
O fato é que, na democracia brasileira, clama-se por maior moralização dos agentes políticos. Quando se investiga, por exemplo, a questão da honestidade, surge a idéia de que ela não existe na política e de que os agentes políticos são, por princípio, desonestos e buscam incessantemente a malversação dos recursos públicos. Naturalizou-se a corrupção no Brasil, de maneira que ela ocupa, constantemente, as páginas de jornais e os noticiários da TV. Há a sensação de que a corrupção se tornou cotidiana, sendo ela uma prática inerente ao campo político e ligada à própria democracia. Causa mal-estar quando se percebe que ainda existe, no Brasil, uma cultura política autoritária, que atribui a existência da corrupção à própria idéia de democracia.
Não creio que precisemos de políticos mais honestos ou mesmo de cidadãos mais honestos, mas a honestidade deve ser um valor consensual para que possamos consolidar a idéia de responsabilidade dos agentes públicos como um termo que paute a cultura política democrática. A honestidade deve ser, nesse sentido, um valor pressuposto, capaz de pautar nossos juízos na esfera pública.
Deslegitima-se a democracia e as instituições representativas, ao se atribuir o cotidiano da corrupção e sua permanência no discurso político às naturais delinqüências do homem público. Por outro lado, reforça-se a idéia de que a regulação política deve ser realizada pelo mercado, sem que o Estado intervenha na vida privada e na livre iniciativa econômica. Como argumento em meu livro, Corrupção, democracia e legitimidade, erodiu-se o consenso de que o Estado tem um papel primordial na política e de que ele venha a exercer sua autoridade no sentido da produção de bens públicos.
A política foi colonizada pelo discurso econômico, de maneira que a produção dos bens públicos e as escolhas públicas devem ser feitas pelo mercado, uma vez que ele seria uma instituição imparcial e baseada no mérito. Por sua imparcialidade e meritocracia, atribui-se ao mercado a realização da racionalidade típica das sociedades capitalistas, sendo o Estado o espaço natural dos vícios políticos. Neste sentido, defende-se no debate público que o Estado deve tornar-se transparente para a cidadania, sendo o cidadão, nessa chave da teoria da economia da informação, um consumidor de bens públicos e portador de direitos à informação.
A erosão do papel do Estado e do consenso que sustenta sua atividade de produtor de bens públicos, em nome de uma nova realidade global, teve várias implicações. Entre elas, a colonização do discurso político pelo discurso econômico, a qual promoveu a crença de que o lugar da corrupção é o próprio Estado, sendo ele um expropriador natural de riquezas e de talentos. Isto acarretou uma desconfiança crescente para com a política e para com a democracia.
Na mesma pesquisa citada anteriormente, quando se questionam os ambientes possíveis onde a corrupção se realizaria e estaria mais presente, percebe-se claramente que, quanto mais próximo do mundo privado, menor é a corrupção. Pela ordem, nos dados da pesquisa realizada pelo CRIP, as instituições mais corrompidas são as Câmaras de Vereadores, a Câmara dos Deputados, as Prefeituras, as pessoas mais ricas, o Senado Federal, o Governo do Estado, os empresários, a Presidência da República, a Polícia Militar, a Polícia Civil e o Judiciário. Na outra ponta, também seguindo pela ordem, a corrupção é menos praticada pelas pessoas mais pobres, as pessoas mais velhas, as mulheres, as pessoas mais jovens, a Igreja, a associação de bairro, as ONGs e os movimentos sociais. Note-se que, em tese, segundo os dados da pesquisa, quanto mais próximo do mundo público e quanto mais forte for a presença da idéia de representação, mais a sociedade brasileira atribui a realização da corrupção. Dessa forma, ocupam o lugar central da corrupção os parlamentos.
A erosão do consenso de que o Estado tem um papel importante na sociedade criou uma posição cínica de que a corrupção que existe ocorre apenas na dimensão pública (que não se confunde com a estatal), sendo a dimensão privada impermeável à corrupção. A própria noção de transparência não dá conta de pensar que aquilo que deve ser transparente tem que estar relacionado a uma idéia maior e mais forte de publicidade. Ou seja, falta ao mercado e às suas demandas de maior transparência uma noção mais aberta de público. O cidadão, dessa forma, é visto como um sujeito privado, como um consumidor de bens públicos, semelhante ao consumidor ordinário.
A erosão do consenso autoritativo, que dá sustentação à própria idéia de exercício da autoridade política pelo Estado, faz com que as demandas republicanas e comunitárias esvaziem-se, resultando nessa posição cínica da própria cidadania, que assiste passiva e apática à tendência crescente de crises políticas e à ocupação massiva dos noticiários policiais por parte da representação política. A principal conseqüência da corrupção é produzir uma crescente crise de legitimidade nas ordens democráticas, esvaziando de conteúdo o discurso político e fazendo com que a democracia esteja submetida a diferentes deslocamentos com relação a seu discurso e a seus procedimentos. É isso que explica o lugar político hoje ocupado pelo Judiciário, que é visto como bastião dos valores democráticos e da moralidade.
O fato é que a corrupção acarreta uma crescente crise de legitimação da democracia, colocando a idéia de representação política à margem da democratização da esfera pública. Essa crise de legitimação está relacionada à erosão do Estado e ao modo como ocorre, nas sociedades contemporâneas, um pleno desequilíbrio entre o público e o privado, pelo qual o segundo implica uma crescente apatia e indiferença, tornando a corrupção perene apesar dos espasmos de alvoroço social. É essa a dubiedade das demandas por maior transparência do Estado. Ela é importante para a realizaçã
o da publicidade, mas, nas democracias contemporâneas, ela se realiza a partir de visões privadas, sem um conteúdo de valores que informem os termos da própria idéia de público.
É fundamental, por conseguinte, discutir, nas democracias contemporâneas, o lugar dos valores públicos, a construção de consensos em torno desses valores e perceber que o mercado, sozinho, não é capaz de produzir bens públicos e escolhas mais eficazes. Se as sociedades não superarem o privatismo contemporâneo, a corrupção persistirá como prática corriqueira e inerente à política, tornando-se esta o espaço dos vícios e da malversação de recursos públicos.
Se sociedades inteiras, inclusive a nossa, não assumirem um compromisso com os valores públicos, continuaremos a assistir, passivos, à sucessão de escândalos políticos e a clamar por maior moralidade dos agentes públicos, sem que, com isso, haja algum resultado efetivo no controle das delinqüências do homem público. Se, democraticamente, não assumirmos uma postura pública, continuaremos a aguardar o próximo escândalo estampado nos jornais, com a inépcia das instituições para conter, dentro das regras democráticas, a escalada da corrupção. A persistir esse contexto de profunda apatia com o público, continuaremos a assistir, passivos, ao próximo escândalo, sempre na sensação de que aguardamos as cenas dos próximos capítulos.
———-
Fernando Filgueiras é doutor em Ciência Política pelo Iuperj, pesquisador do Centro de Referência do Interesse Público da UFMG e autor de Corrupção, democracia e legitimidade (Editora UFMG, 2008).
Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil