Milton Temer
Mas, afinal, o que pode haver de surpreendente na última canalhice explicitada pela divulgação dos atos secretos promovidos por Sarney, Renan e companhia bela na presidência desse abastardado “Senado da República”? O surpreendente é que tenham vindo a público. O que só ocorreu por conta das denúncias que os oligarcas guardam, uns contra os outros, para uso em momentos em que seus interesses próprios são contraditados.
O que está ocorrendo naquele vetusto plenário é apenas conseqüência dos estilhaços resultantes da última disputa da presidência da Casa; do controle de suas pantagruélicas verbas e de seus incontáveis cargos em comissão. Não fora isso, e ainda estaríamos com o “imortal” Sarney nos importunando tranquilamente com aquela pena de escriba sem jaça e aquela voz de Drácula do serrado, cuja oportunidade de expressão a mídia conservadora e reacionária generosamente lhe concede.
Portanto não há o que comentar quanto à hipocrisia e às aleivosias escarradas naquele inqualificável discurso de ameaças aos “pares”, que a população se obrigou a ver, ouvir ou ler, em todos os meios de comunicação, e com raros comentários críticos.
O que há a comentar, e mais uma vez lamentar, é a cumplicidade explícita revelada na anacrônica solidariedade prestada por Lula, quase de bate-pronto.
Lula e o PT, como se sabe, construíram sua história política numa oposição radical, ao longo de duas décadas, a tudo o que Sarney e seus parceiros macabros na representação parlamentar das classes dominantes praticaram – Renan, Jader, Jucá, Gedel, Michel Lully (Temer é seu penúltimo sobrenome, nada tendo de familiar com o escriba destas mal traçadas), apenas para citar os mais “expressivos”. Contra Sarney, particularmente, o mínimo que disse, lá nos longínquos anos 80, é que se tratava de um grileiro. Para os outros, bastava o “300 picaretas”.
O que o levou, então, a forjar o bordão – não para condenar, mas para louvar – de que “Sarney não é uma pessoa comum”e que não pode ser vitima de “denuncismo” por conta de sua “história política”?
É isso que pensam alguns nomes, outrora membros de uma esquerda, se não revolucionária, digna e combativa, que ainda se inscrevem nas fileiras do PT? Membros de uma resistência torturada ou com parentes e amigos próximos assassinados pelo regime ditatorial do qual Sarney foi pontífice durante todo o tempo? Um regime ao qual Sarney passou a apoiar tão logo proclamou sua traição ao governo João Goulart – a quem nunca fez oposição por conta das benesses que tal comportamento lhe permitia -, e que só abandonou quando já era irreversível o fim do seu ciclo?
Espero que não. Pois não posso imaginar que a “disputa por dentro”, alegada pelas razões mais diversas, os leve a tal ponto.
O que Lula comete com a solidariedade atual a Sarney é apenas a confissão definitiva de sua opção política e ideológica atual. De sua traição sem volta aos ideais que mobilizaram corações e mentes de várias gerações na esperança frustrada de transformações radicais na realidade social brasileira. E, por favor, não me venham com as compensações bolsistas para alegar que “nunca neste pais se fez tanto pelos mais pobres”. Esmolas pródigas podem matar a fome, mas não abrem horizontes de esperanças e vida alternativa para ninguém. Principalmente quando elas não passam de alternativa desmobilizante contra o incontestável “outro lado da moeda”, na defesa dos interesses das classes dominantes: a manutenção das linhas-mestras da política macroeconômica impostas pelos governos neoliberais de Collor (hoje, aliado de Lula) e FHC, com as consequentes isenções tributárias gigantescas ao grande capital; os benefícios e prioridades fornecidos ao predatório agronegócio e a irresistível vocação de fazer o Brasil retornar aos anos 30, pelos privilégios à exportação de produtos primários e à crescente importação de manufaturados.
O episódio Sarney, e seus podres, não deve ser motivo de maior interpretação pois é apenas mais uma confirmação das práticas das classes sociais que ele representa no Legislativo, e das quais faz parte na vida quotidiana. O que deve ser interpretado, e severamente condenado, é a reação de Lula, confirmando-se na condição de capataz das classes que oprimiram e oprimem seus iguais em origem, e às quais ele se oferece como garoto-propaganda.
Milton Temer é jornalista e presidente da Fundação Lauro Campos