Por Gabriel Brito
No último dia 30 de abril, o STF finalizou o processo de extinção da antiga Lei de Imprensa, revogando-a definitivamente depois de ter suspendido, em fevereiro de 2008, 22 dos 77 artigos de seu texto. Assim, abriu-se um enorme leque de dúvidas a respeito da regulamentação do exercício da profissão, além de muitas interrogações a respeito dos inumeráveis processos hoje em andamento, que agora podem adentrar o terreno do ‘vazio jurídico’.
Para o jornalista Hamilton Octavio de Souza, chefe do departamento de jornalismo da PUC, é importante que se redija uma nova lei, com vistas a proteger a cidadania e a liberdade de acesso de todos aos meios de comunicação, ao lado da necessidade de se assegurarem instrumentos de controle da responsabilidade da informação.
Entrevistado pelo Correio da Cidadania, Hamilton lembra que existem demandas urgentes, como as concessões de rádio e TV e a democratização da mídia, que precisam ser garantidas para que se mude algo de efetivo na atual correlação de forças. “O único instrumento que hoje regulamenta a comunicação é a Constituição, e ela não é cumprida. O resto é faroeste”, sintetiza.
Por fim, falando em democratizar, aponta que a Conferência Nacional de Comunicação, marcada para dezembro, poderá se transformar numa ‘farsa sob controle da mídia dominante’ caso não haja mobilização popular em torno dela.
Correio Cidadania: O que você pensa da revogação da Lei de Imprensa? A esta altura, é de valor mais simbólico ou prático?
Hamilton Octavio de Souza: Tem interferência em questões práticas, porque, embora a Lei de Imprensa seja um entulho da ditadura, regulamentava questões que ficaram sem regulação, como o direito de resposta, a questão da responsabilidade dos veículos, dos danos morais… Detalhava algo que, apesar de previsto no Código Penal, este não entra em alguns pormenores específicos que a Lei de Imprensa tratava. Assim, ela cria um vazio de legislação nesse momento.
O Brasil precisa de uma lei que regulamente o funcionamento da comunicação social, que seja democrática, permitindo ao cidadão que se defenda e tenha acesso aos veículos, de maneira que possa se expressar. Não faz sentido que os meios fiquem isentos de sua responsabilidade nos ataques e matérias que fazem em relação a pessoas, empresas, entidades ou movimentos sociais.
Portanto, a derrubada da Lei de Imprensa cria uma situação que deverá criar polêmicas sobre como fiscalizar e atuar nesta área sem lei específica. Além disso, em determinados casos, pode tanto prejudicar o cidadão como também a própria empresa de comunicação, pois dependerá da cabeça de cada juiz estabelecer o que se fazer em cada situação.
Existem no momento milhares de processos de danos morais em andamento, causados por matérias veiculadas pela mídia. Se não se tem mais a lei que cuida disso, muitos juízes podem optar pelo arquivamento dos processos.
Sendo assim, penso que o Brasil precisa de uma lei democrática, que pense na defesa do cidadão diante de algum ataque ou divulgação de informação que cause prejuízo à sua vida.
CC: Dessa forma, podemos imaginar que esse citado vazio jurídico poderia ser ainda mais prejudicial para setores mais fracos da sociedade e com menor poder de expressão de suas idéias.
HOS: Exatamente, porque as classes dominantes – políticos, autoridades, ricos em geral – têm acesso garantido aos meios de comunicação. Quem não o possui são os cidadãos comuns, o trabalhador, aquele que não tem nenhum tipo de pistolão, proteção de autoridades ou de gente rica e poderosa. É neste caso que a Lei de Imprensa era um instrumento que precisava ser revogado. Mas algo precisa ser deixado em seu lugar, construído sob a visão de defesa da cidadania, dos direitos humanos e do acesso do cidadão aos meios de comunicação.
CC: Seriam esses os verdadeiros pontos fundamentais a serem tratados em uma eventual nova lei de imprensa, portanto.
HOS: Sim, devemos caminhar para isso. É inacreditável que tanto o governo atual como os que se seguiram após o fim do regime militar – Sarney, que viveu a Constituinte, Collor, FHC, Lula – não tenham tomado a iniciativa de construir uma nova Lei de Imprensa, democrática e adequada aos direitos do cidadão de poder falar e se defender de ataques da mídia. Ninguém construiu isso e ficou o vazio.
Na verdade, há um medo muito grande de regulamentação na área. Há demandas para regulamentação das concessões de rádio e TV, regulamentação de distribuição da verba de publicidade oficial, regulamentação dos canais de TV paga via satélite e da própria distribuição de conteúdo pela telefonia. São todos pontos sem regulamentação.
Na verdade, é um caos deliberado, pois há integrantes da classe dominante, e principalmente empresários da comunicação, que têm interesse em atuar neste caos, pois levam vantagem. Sem regulamentação, fazem aquilo que lhes interessa empresarialmente.
CC: E quais interesses mais específicos poderiam se impor, em detrimento de discussões mais prementes, no que tange uma regulamentação da função da imprensa?
HOS: Temos uma situação inconstitucional na questão da radiodifusão. Isso porque a Constituição expressa, em seus artigos 220 e 224, que no Brasil não é permitido monopólio ou oligopólio nos meios de comunicação.
No entanto, as redes que atuam no país possuem uma quantidade enorme de veículos a elas vinculados, constituindo um quadro de oligopólio, o que é ilegal, inconstitucional. É um caso de desrespeito à Constituição.
Por exemplo, a questão das concessões de rádio e TV é prejudicada pela falta de uma legislação que estabeleça um critério claro sobre quais condições um veículo deve atender para obter a renovação de concessão. A concessão é dada para um período de 15 anos e, finalizado esse período, como aconteceu no ano passado, com várias emissoras renovando as suas permissões, não havia nenhum critério de avaliação. E os critérios poderiam se pautar em conferir se a emissora vem cumprindo aquilo estabelecido na Constituição. Lá, está escrito que a comunicação social tem de dar prioridade à informação, educação e cultura. E também que o sistema de comunicação deve ser público, privado e estatal.
Temos um desequilíbrio muito grande nisso, com um sistema privado grande, uma pequena participação estatal e a inexistência do sistema público. Outro ponto estabelecido é que as redes de rádio e TV devem ter produção local e regional, a fim de estimular e preservar a cultura regional. Isso não é respeitado pelas redes, que transmitem uma programação nacional, sem apoio e estímulo à produção cultural regional.
Ou seja, o único instrumento que hoje regulamenta a comunicação é a Constituição, e ela não é cumprida. O resto é faroeste. Quem tem mais poder de fogo atira como quiser. Dessa forma, estão nadando de braçada pela falta de controle dos meios. E está valendo tudo: proselitismo político, proselitismo religioso, transformar um canal em televenda de massa, um absurdo.
CC: E você enxerga possibilidade de que o momento possa impulsionar um debate mais profundo sobre a democratização da mídia?
HOS: Os setores ligados à luta pela democratização da comunicação, os movimentos sociais (que têm consciência da importância da comunicação em seus próprios processos de luta), vêm atuando no sentido de tentar colocar na agenda nacional a discussão deste tema.
Acontece que a grande imprensa e seus principais veículos não entram na discussão. E possuem no governo um aliado, no caso o próprio ministro das Comunicações Helio Costa, que é um representante das grandes redes. Ao invés de chamar o debate, o ministério tenta abafá-lo. E aos grandes veículos não interessa convocar o debate, para eles está tudo ótimo e assim deveria continuar.
CC: Qual a sua expectativa para a Conferência Nacional de Comunicação, marcada para dezembro e com apoio já declarado pelo presidente Lula?
HOS: Essa Conferência só tem condições de avançar para alguma proposta de democratização se houver uma grande mobilização popular. Sem essa mobilização, será uma conferência manipulada pelo Ministério das Comunicações – como, aliás, já vem fazendo, através de controles nos estados, de maneira a fazer com que a participação dos delegados da representação que culminará na conferência configure um congresso sob controle dos setores da mídia dominante. Portanto, pode se transformar numa grande farsa.
Só não o será se os movimentos populares e os setores que defendem a democratização fizerem grandes mobilizações pelo Brasil.
Gabriel Brito é jornalista.
Fonte: Correio da Cidadania de 30/05/09