Por Valéria Nader, no Correio da Cidadania
O caráter parcial, excludente e antidemocrático constitui-se em um modo conhecido na condução de nossa economia, política e sociedade – setores em que a proeminência desse modo tem sido bastante explorada pelos estudiosos mais críticos. Mas, nesse início de 2009, ele tem adquirido um sentido especial, diante de uma profusão de barbaridades no tratamento de nossas cidades.
Sim, de nossas cidades, o único espaço territorial concreto, aquele que a população enxerga, pisa, no qual tem a possibilidade real de perceber o que ocorre e de intervir em função de suas aspirações coletivas. No entanto, não é bem assim que acontece: a percepção e capacidade de intervenção das pessoas passam por variados filtros e bloqueios, obviamente associados aos poderosos interesses sempre em jogo em nosso país.
Em um ano de crise econômica internacional, e também nacional, agora já evidentes, tem ressaltado com maior destaque, entre as medidas anti-crise, o tão propagandeado plano habitacional do governo. Não raro esse plano vem sendo associado à realização de uma política habitacional e urbana da qual o país de longa data carece. Detendo-se, no entanto, um pouco mais nesse plano e, especialmente, em tantas e novas medidas que estão sendo tomadas no tocante à questão urbana neste ano, salta aos olhos aquele mesmo caráter extremadamente parcial, excludente e antidemocrático.
Pacote habitacional?
Vamos aos fatos. E, como primeiro exemplo, comecemos pelo de maior visibilidade: vem aí o citado novo plano habitacional do governo. Seriam necessárias muitas linhas para traçar aqui uma visão crítica mais elaborada desse plano, o que não é o objetivo. Mas pode-se apelar para a lógica imperante no país e para a percepção de estudiosos e leitores que buscam olhar a realidade com maior profundidade para trazer à superfície pelo menos um dos seus pontos mais obscuros.
O Estatuto da Cidade, que passou a existir a partir de 2001 – e, portanto, somente 13 anos após a determinação de regulamentação no uso da terra urbana pela Constituição de 1988 -, visa dar ao município os instrumentos políticos para enfrentar as dificuldades de acesso à terra pela população de baixa renda, combatendo a especulação imobiliária. Dentre estes instrumentos estão, por exemplo, o IPTU (Imposto Predial e Territorial Urbano) progressivo e as ZEIS (Zona Especial de Interesse Social). Ocorre que os municípios ainda não conseguiram nem mesmo aplicar o Estatuto da Cidade. Não resolveram, destarte, a questão da função social da terra. Como conseqüência inelutável, a tão ansiada execução do novo plano habitacional tenderá novamente a concentrar a população mais pobre nas periferias, longe das áreas centrais e de sua infra-estrutura urbana, onerando o orçamento público e gerando novos problemas de urbanização.
Ademais, estamos diante de um plano de proporções inéditas. Se levado a cabo conforme o planejado, atingirá uma produção de larguíssima escala. A despeito, portanto, da ênfase oficial de que se trata de um plano cujo objetivo maior é a população de baixa renda – que realmente nunca teve acesso aos benefícios que estão sendo projetados -, será praticamente impossível evitar o protagonismo que deverá assumir o mercado imobiliário, o que terá impacto generalizado nas cidades.
Para uma visão mais aprofundada deste plano, o leitor pode acessar a entrevista que o urbanista e professor da FAU-USP João Whitaker concedeu recentemente ao Correio, sob o título Pacote Habitacional fracassará se não enfrentar questão da posse da terra.
Mas vamos além. Se o conhecimento das eventuais deficiências desse plano ainda é, de alguma forma, acessível ao público em geral, até pela própria notoriedade que ele alcança na grande mídia, o mesmo não se pode dizer de outras providências e medidas que vêm sendo tomadas na área urbana.
As novas taxas de ‘revitalização urbana’
Permanecendo ainda na esfera federal, algum leitor já ouviu, por exemplo, falar da Care? Obviamente que alguns devem saber do que se trata, mas, muito provavelmente, uma minoria. O que não dizer da população em geral, aquela que nem mesmo tem possibilidade de acesso à informação?
Por sugestão da Associação Comercial do Rio de Janeiro, trata-se de uma nova contribuição, a ser proposta ao Congresso pelo governo através de emenda à Constituição. A finalidade declarada seria custear a revitalização econômica de áreas urbanas centrais inquestionavelmente degradadas. Curiosa, no entanto, para dizer o mínimo, é a forma pela qual a contribuição será posta em ação: as prefeituras só poderiam instituir o tributo a pedido dos contribuintes que vão pagá-lo, quais sejam, os donos de imóveis não-residenciais interessados em bancar a revitalização de determinada área da cidade. Caberia exclusivamente a uma entidade sem fins lucrativos a ser criada, as chamadas Opres, Organizações privadas de revitalização econômica, propor às prefeituras a criação das áreas de revitalização econômica.
A idéia tem como justificativa o velho argumento fiscalista, da insuficiência de recursos públicos. Estaria, ademais, inspirada em experiências bem sucedidas em cidades do Canadá e Estados Unidos, segundo ressaltado por alguns dos maiores veículos de comunicação, como pretensa forma de conferir legitimidade a esta nova taxa.
Em um país que procede a tantas ‘apropriações indébitas’, especialmente na mimetização de padrões de consumo do primeiro mundo para as suas ‘ilhas de prosperidade’ locais, a arquiteta e urbanista Mariana Fix, autora do livro São Paulo Cidade Global: Fundamentos financeiros de uma miragem (para saber mais sobre o livro clique aqui), coloca essa contribuição em um lugar mais adequado. Para a urbanista, os Business Improvement Districts (BIDs) norte-americanos são um dos modelos que inspiram a criação dessas contribuições. O sistema surgiu nos Estados Unidos e permite aos empresários e proprietários, em determinados distritos, se organizarem para cobrar de si mesmos taxas para manutenção e melhoria de áreas públicas – o que acaba por ser um modo de assumirem o controle sobre elas, segundo a socióloga Sharon Zukin, professora da City University of New York, citada por Fix. E de experiências localizadas para resolverem carências específicas, os BIDs podem se generalizar como uma forma de gestão da cidade, com alto grau de controle privado sobre os espaços públicos.
Em uma total inversão de papéis, é, portanto, a própria redução de serviços públicos nessas regiões que passa a ser utilizada como justificativa para a implantação de formas empresariais de gestão, levando os governos locais a se alinharem com promotores imobiliários, e a assumirem uma gestão de tipo empresarial das cidades.
Kassab e as concessões urbanísticas
É a partir dessa mesma lógica perversa que devem ser tomadas e entendidas as novas iniciativas do prefeito Gilberto Kassab na maior cidade do país. Manchete do caderno Cotidiano da Folha de São Paulo de 19 de abril, “Lei emperra revitalização e ocupação na região central”, não deixa dúvidas quanto aos poderosos interesses que já se articulam em torno do novo cartão de visita do prefeito em seu segundo mandato: a revitalização do centro, em substituição à Cidade Limpa do primeiro mandato. A sub-manchete deixa menos dúvidas ainda quanto aos grandes interessados: “Mercado reclama de excesso de exigências para liberar novos prédios residenciais”.
Tudo começa por um processo de revisão altamente questionável do Plano Diretor da cidade – comprometendo, ao que parece, vastos setores de direitos sociais, como educação, saúde, assistência social, cultura, esp
ortes, lazer etc., além de alterar de modo excludente a organização e crescimento dos bairros, onde algumas áreas deixariam de fazer parte das ZEIS (Zonas Especiais de Interesse Social), especialmente na região central da cidade. Mudanças que não contam sequer com uma discussão mínima com a sociedade, desrespeitando inclusive as próprias condições impostas pelo Estatuto da Cidade e pelo Plano Diretor anterior, de 2002, que previam a revisão apenas para 2012.
É na esteira deste processo que a Câmara dos vereadores de São Paulo já aprovou, no final de março, o projeto que autoriza a “terceirização” de áreas degradadas. Trata-se de uma concessão urbanística, que permite que a prefeitura transfira para a iniciativa privada, mediante licitação, o poder de realizar grandes intervenções em áreas decretadas como de interesse público, inclusive desapropriações, em nome do próprio poder público. O texto aprovado já inclui até mesmo a primeira região que sofrerá este tipo de intervenção, a Nova Luz, conhecida como Cracolândia.
A iniciativa foi saudada pela grande imprensa e pelo marketing oficial como bastante promissora, já que finalmente estaria rompendo com a inércia de tantos anos de falta de atitudes desse teor, prometendo não somente revitalizar áreas degradadas, mas dinamizar as economias locais e gerar empregos. Já se especula inclusive sobre o espraiamento do modelo para outras áreas como Mooca, Vila Leopoldina, Pirituba. Não é, no entanto, assim que pensam, mais uma vez, algumas das populações afetadas, como comerciantes tradicionais da rua Santa Ifigênia, que muito provavelmente deverão deixar seus locais de trabalho por pressões do setor imobiliário, e também vários dos estudiosos da questão urbana.
O urbanista João Whitaker faz crítica contundente à iniciativa, que vê como inconstitucional, por atender aos interesses de lucratividade de corporações privadas em detrimento do interesse social. E mais do que seu caráter inconstitucional, o urbanista ressalta uma escancarada e escandalosa escalada na priorização dos interesses privados relativamente às famosas Operações Urbanas, previstas no Plano Diretor de 2002.
Através destas operações, é permitida a construção de edifícios com área maior do que o limite originalmente estabelecido pela lei, desde que se pague por isso à prefeitura – e com o dinheiro arrecadado devendo ser destinado a melhorias urbanas na própria área. Elas já implicam, portanto, na submissão do planejamento urbano aos interesses do mercado. O que dizer então do novo mecanismo de “Concessão Urbanística”, onde simplesmente se transfere ao mercado imobiliário a prerrogativa de desapropriar terrenos nas áreas em que pretenda investir? Para Whitaker, a resposta é simples: “na prática, a prefeitura está não só abdicando de sua prerrogativa de planejar a cidade, como está repassando tal função a grupos privados cujo interesse – o lucro – evidentemente está longe de ser público”.
A conseqüência inexorável não poderá ser outra: um mercado imobiliário reinando absoluto na cidade. E mais: com muitas regalias aos escritórios internacionais de arquitetura, que deverão fazer “a ponte” com as “grandes incorporadoras locais dispostas a investir na região”. Sob a alegação de “valorização de um bom produto” – segundo as próprias palavras do diretor de Desenvolvimento e Intervenção Urbana da Empresa Municipal de Urbanização (Emurb), Rubens Chamas, divulgadas pelo jornal Estado de S. Paulo no dia 23 de abril -, justifica-se a venda de trechos da cidade de São Paulo.
Uma perversa lógica econômica
O avassalador mergulho do Brasil no neoliberalismo, especialmente a partir da década de 90, teve obviamente suas conseqüências no tratamento de nossas cidades pelo poder público. O acirramento das medidas ‘terceirizadoras’, trazendo o setor privado para o centro das iniciativas, sob a falsa perspectiva de parceria inovadora e construtiva, está aí para comprovar.
No final de 2002, em artigo para o Correio da Cidadania na coluna Cidade Aberta (para ler o artigo, clique aqui), a urbanista Mariana Fix já alertava para o predomínio do sentimento de incapacidade do Estado em dar conta dos crescentes problemas urbanos em função da falta de recursos, o que estaria na origem das concessões urbanísticas. Fix fez aí o importante alerta de que “mais do que uma praça ou uma escultura, a ‘sociedade civil’ assume o protagonismo da produção e controle do espaço público. Surgem associações – ditas da ‘sociedade civil’ as essencialmente compostas por setores empresariais, especialmente bancos ou construtoras – com propostas que vão da instalação de um sistema privado de vigilância, até a abertura de bulevares, passando pela coleta seletiva do lixo, enterramento da fiação e retirada dos postes, alargamento das calçadas. Essas associações legitimam-se ao oferecer, às vezes de modo palpável, melhorias nos seus bairros – milagre da cidade de primeiro mundo em país de terceiro. Mesmo quando o controle que exercem, do desenho urbano à segurança privada, objetiva a exclusão e a segregação”.
Neste sentido, enquanto tudo se faz passar como se as empresas prescindissem do Estado, o que ocorre na prática é que os investimentos privados são quase sempre irrelevantes perto dos recursos públicos investidos nas regiões sob intervenção, direcionando-os ademais para as regiões privilegiadas. “Pequenas iniciativas, acompanhadas de um bom marketing, criam a impressão de que as empresas assumem os custos, escamoteando o fato de que essas ações estão quase sempre associadas a grandes investimentos do Estado em infra-estrutura”, enfatiza Fix.
Este recorrente apelo à abordagem fiscalista, justificando a participação da iniciativa privada em função da insuficiência orçamentária do governo, vem sendo paulatinamente posto em descrédito. Alertas dos estudiosos, bem como de movimentos como o Fórum Centro Vivo, em São Paulo, dentre muitos outros, ajudam na conscientização de que a centralidade do argumento da falta de recursos vem apenas acobertar um estabelecimento de prioridades altamente excludente das classes desfavorecidos.
Em um país em que as mazelas sociais são tão pronunciadas, sendo especialmente evidenciadas nas diversas localidades, não parece mesmo fácil, no entanto, fugir aos discursos ‘embelezadores’ e ‘salvacionistas’ e às saídas estéreis a que eles conduzem. Houve uma certa ‘esperança’, nos idos de 2002, de romper com esse ciclo pernóstico que enreda as nossas cidades. Criou-se o Ministério da Cidades, regulamentou-se também o Estatuto das Cidades, abrindo-se novas e promissoras idéias para tratar a questão urbana. Porém, temos uma persistente lógica econômica a nos presidir, que é o real nascedouro de tantos descaminhos e contradições, com suas respectivas conseqüências nocivas e hoje tão evidentes nas cidades, no campo, no meio ambiente.
Sem romper com esta lógica, para o que somente a pressão da sociedade poderá apresentar alguma saída atualmente, as nossas cidades continuarão sendo vitrines e palcos privilegiados na apresentação da degringolada social, ambiental e urbana.
Valéria Nader, economista, é editora do Correio da Cidadania.
Originalmente publicado no Portal Correio da Cidadania em 30-Abr-2009