por Ricardo Alvarez
Ação da Polícia Militar de SP na segunda maior favela da cidade peca pela agressividade contra pobres e o direito de protestar, mistifica a origem dos confrontos e alimenta a idéia de “limpeza social”.
Tudo começou com o atropelamento e morte de um garoto que teve duplo azar na vida: nasceu pobre e morreu nos primeiros anos de sua frutífera vida. Seguiu-se ao acidente uma manifestação dos moradores por equipamento público, para coibir novas mortes. Nada mais justo e compreensível.
Na manifestação ocorreram quebradeiras provocadas por garotos que não têm muito a perder, mas não contavam com o apoio dos manifestantes e da Associação de Moradores. Quando se vive no limite, relegado a uma mobilidade restrita numa metrópole repleta de possibilidades, sem a presença efetiva de equipamentos públicos de qualidade, assombrado pela violência, pelo desemprego, miséria, álcool e rendimentos risíveis, a fronteira entre o legal e o ilegal é muito tênue. Não se trata simplesmente de “desvio de caráter”, ou de vandalismo inconsequente como parte da imprensa e a própria SSP fez crer. Mas o teatro estava apenas no começo.
Paraisópolis é uma grande mancha urbana de pequenos casebres, alta densidade demográfica e com indicadores sociais perversos: apenas 0,45% dos jovens entre 18 e 24 anos estão no ensino superior. Em 1991 o índice era de 1,19%. Apenas 20% do mesmo grupo social estão no ensino médio (Moema tem percentual de 84%) e a baixa escolaridade colabora no desemprego: 1 em cada 4 adultos está sem trabalho. A renda média entre seus moradores é de R$ 367,00 ao passo que na cidade de São Paulo o valor chega a R$ 1.325,00. A degradação persistente da qualidade de vida destas pessoas desceu em profundidade abissal.
Ao seu redor encontramos situação inversa: cercada de edifícios majestosos, casas de alto padrão, com imensos terrenos gramados e arborizados, seguranças particulares e abastecidos de total infra-estrutura. Seus vizinhos gastam mais dinheiro num ano em manutenção das piscinas do que o Estado em educação a estes deserdados urbanos.
Cito esta contradição explícita na paisagem da geografia local para reforçar a idéia de que o convívio permanente entre os socialmente desiguais é sempre explosivo, apesar da repetitiva ladainha que o problema reside na personalidade das pessoas, que a delinqüência vem de berço e a violência está no sangue de alguns. Tolos, não percebem que este mesmo discurso embala as políticas de segurança pública há décadas sem solução definitiva.
Também não façamos coro com a tese dos “dois Brasis”, pois as relações entre estes dois mundos são próximas. Trabalhar com o doméstica nestas residências é uma das principais fontes de empregos para as mulheres de Paraisópolis e o assistencialismo corre solto e evidencia sua incapacidade em apontar saídas: Kaká doou bolas, ONG´s distribuem alimentos e roupas, a BOVESPA montou uma Biblioteca, Colégio de classe alta da redondeza oferece bolsas de estudos, enfim, ações apoiadas em responsabilidade social que não dão conta de suprir a irresponsabilidade social dos governos constituídos.
Quando carros foram atacados, pneus queimados e comércios destruídos, num ato espontâneo de revolta contra uma realidade insuportável, a resposta foi o show da operação policial. Estar rodeado de ricos e, principalmente, muito próximos do Palácio do Governo de São Paulo, habitado e dirigido pelo Sr. José Serra, foi outro baita azar.
Na ótica do governo, era preciso agir e rápido. Primeiro, a desculpa padrão: a culpa é da própria população que protege os traficantes que atacaram a Polícia. Segundo, uma movimentação policial exemplar: desfile de viaturas pela Marginal do Rio Pinheiros mostrando que o Governador não tergiversa, age. Terceiro, a grande mídia entra em cena: como sempre criando cenários que levam a conclusão imediata de que a ação se justifica, e mortos e feridos são inevitáveis.
O mais irônico é que ocupar casas sem mandato de segurança virou rotina, matar jovens suspeitos, uma necessidade e, aterrorizar a população local, um aviso. Minha suspeita é que por detrás deste modus operandi, que se diga não é uma exclusividade de São Paulo, existe uma política mal disfarçada de redução das pressões populacionais por emprego e serviços públicos, que acomete principalmente crianças e adolescentes pelo Brasil afora. São grupos de extermínio institucionalizados e que comumente recebem aplausos de telespectadores confortavelmente instalados diante de seus televisores, e crentes de que o melhor foi feito.
Poderia haver o caminho do diálogo, sem dúvida nenhuma, houvesse interesse do Gabinete do Governador. O Cel. Ailton Araújo Brandão, comandante da ação em Paraisópolis tem, inclusive, folha corrida a este respeito. Ele foi um dos participantes daquela malfadada reunião ocorrida com a cúpula da Polícia Militar de SP e o PCC, em 2006, quando era Comandante da PM na ponta oeste do estado de São Paulo, justamente onde estavam presos os membros da cúpula da organização. Um ano depois recebeu o título de cidadão prudentino, com direito a almoço e placa da honraria pelos serviços prestados.
O Cel. Brandão apontou seu dedo para as novas tecnologias como culpada pelo sumiço de gravações contra a PM pela morte de 104 pessoas nos confrontos com o PCC. O gravador do 190 falhou e o backup automático também falhou.
Mas ele foi condecorado pela Assembléia Legislativa de São Paulo em setembro de 2007 como Comandante do Policiamento da Capital da Polícia Militar do Estado de São Paulo, junto com o Governador Serra. Recebeu importante medalha dos paulistanos, embora o povo de Paraisópolis possivelmente nem saiba que ela exista. Talvez por isso a raiva.
A PF também chegou ao referido Cel. através da Operação Santa Tereza. Em reportagem do jornal O Estado de S. Paulo foi revelado um esquema de distribuição de ingressos para uma festa de peão no interior de São Paulo com artistas consagrados. O “mimo” era a contrapartida pelo oferecimento de segurança pública a um prostíbulo privado que lavava dinheiro do BNDES na capital. Vê-se, portanto, que o crime maior não está em Paraisópolis, mas em outros lugares e o Cel. sabe quais são.
A ação da polícia é a síntese de uma imbricada teia de interesses que passa pela definição, a priori, de que pobre em favela é culpado antes de mais nada, de que é preciso fazer alguma coisa contra a criminalidade e é na favela que o tráfico manda. Humilhar pessoas, revistando-as, invadindo suas casas, num show travestido de caça aos traficantes explicita mais do que uma prática condenável, mas um tratamento de choque para um problema social.
A ocupação da favela de Paraisópolis na cidade de São Paulo, neste começo de fevereiro, é emblemática sobre o papel do tucanato diante dos problemas sociais no estado de São Paulo. Para fazer justiça, o Demo Kassab também foi condecorado na Assembléia Legislativa num ambiente agradável e de confraternização.
Pena que enquanto alguns desfrutam deste conto de fadas com dinheiro público outros vivem num inferno constante e são condenados ao castigo da morte lenta e silenciosa. Mesmo vivendo na “cidade do paraíso”.
Ricardo Alvarez é professor, militante do PSOL e editor do Blog Controvérsia – blog.controversia.com.br