Por Gilberto Maringoni
A economia brasileira está diante de um cenário de incertezas em meio à crise mundial. Cresce, especialmente no Banco Central, a idéia de que não se devem alterar os fundamentos da política econômica ultra-ortodoxa, até aqui adotada. Vigora a máxima de que “não é hora de mudar o que está dando certo”. A frase é para lá de duvidosa. Antes de examiná-la, vale a pena contar uma pequena história.
Entre os dias 24 e 28 de maio de 1940, disputou-se em Londres um dos lances decisivos da Segunda Guerra Mundial. Nesse breve período, o então recém-empossado primeiro ministro Winston Churchill (1874-1965) enfrentou praticamente sozinho uma opinião dominante no Gabinete de Guerra. A maioria de seus membros defendia a assinatura de uma série de acordos com a Alemanha, para evitar agressões ao território inglês. Conservador e tido como alcoólatra, Churchill já granjeara a fama de belicista na Câmara dos Comuns, por sua defesa incisiva do investimento na indústria de guerra. O caso é narrado num livro primoroso, “Cinco dias em Londres”, de John Lukacs (Zahar, 2001).
A situação na Europa ocidental era a pior possível para os aliados. A França estava prestes a se render, a Bélgica capitulava e as tropas inglesas no continente marchavam para a retirada de Dunquerque. Com a Espanha, Portugal e Itália simpáticos ao nazismo, o enfrentamento continental estava praticamente decidido. Hitler despertava admiração por parte de membros do gabinete inglês. Lorde Halifax, o ministro das Relações Exteriores, chegou a escrever em seu diário, após um encontro com o Führer em 1937, que “embora haja muito do sistema nazista a ofender profundamente a opinião britânica, não estou cego ao que ele fez pela Alemanha e para manter o comunismo fora de seu país”.
Em meio a uma situação de crise aparentemente insolúvel, Churchill decidiu mudar toda a lógica da política externa e partir para a ofensiva, na tarde de 28 de maio, durante uma reunião extraordinária do Gabinete de Guerra. Leiamos o relato de Lukacs:
“Durou cerca de uma hora. O espírito decidido de Churchill impressionou e dominou a todos. (…) A questão decisiva (…) ficou para o final. Churchill admitia (se assim se pode dizer) que havia pensado ‘se não faria parte de sua obrigação considerar negociações’ com Hitler. Mas concluíra que seria tolice pensar que, se tentássemos fazer paz agora, conseguiríamos melhores termos dos alemães do que se resolvêssemos a questão pelas armas. Os alemães iriam pedir nossa frota – chamariam isso de ‘desarmamento’ -, nossas bases navais, e muito mais ainda. Seríamos um país escravo”.
O primeiro-ministro cancelava ali todas as negociações com a Alemanha e partia para o conflito. Com sangue, suor e lágrimas, como todos sabem. A guerra não foi vencida pela Inglaterra, e sim pela União Soviética, secundada pelos Estados Unidos. Mas aquele inglês de cara rechonchuda e ar de beberrão manteve a dignidade de seu país e a história lhe fez justiça.
O Brasil de 2008 não está sob o cerco de armas inimigas e nem vivemos sob o terror de uma guerra. Mas o país encontra-se ilhado pela ditadura das finanças internacionais e pelos interesses rentistas locais, que cobram um preço por termos abraçado quase acriticamente os mandamentos da ortodoxia econômica.
Tais parâmetros não estão dando certo. O real perdeu quase metade de seu valor entre agosto e outubro, a atividade produtiva se desacelera e as contas externas se deterioram rapidamente.
Em lugar de um Gabinete de Guerra, temos o Copom, que rege a vida econômica nacional. A crise mundial desmoralizou postulados aparentemente consolidados, como o da supremacia dos mercados sobre todas as coisas vivas ou mortas. Ela coloca diante do governo brasileiro dilemas que guardam alguma semelhança com os da Inglaterra de sete décadas atrás. Tais dilemas não se referem aos momentos históricos, mas às alternativas postas no tabuleiro. Existem fundamentalmente duas: adaptar-se passivamente a uma situação inédita ou tentar uma reação ativa e altiva. A segunda opção, a mais difícil, impõe também sangue suor e lágrimas e contraria interesses pesados. Mas pode ser mais interessante no médio e no longo prazo.
Os lordes Halifax da atualidade temem tal postura. Também eles simpatizaram com os malabarismos da finança mundial, fazendo ressalvas a problemas secundários e extasiando-se com a ilusória prosperidade da alavancagem sem limites.
A lógica do Banco Central brasileiro compõe-se de um kit aparentemente lógico. Trata-se da tetralogia juros altos/ liberdade irrestrita de movimentação de capitais/câmbio flutuante e metas de inflação.
Todos sabem como o conjunto funciona. Juros altos e liberdade financeira atraem todo tipo de capital, que aprecia o câmbio ao mesmo tempo em que contrai a demanda agregada, contribuindo para manter a inflação dentro de uma meta apertada. Sustentando tudo, como âncora de credibilidade, estão os elevados superávits primários, a definir cortes contínuos ao orçamento público para que haja dinheiro destinado ao funcionamento da engrenagem. A qualquer oscilação maior, os juros são aumentados. O BC não se preocupa com crescimento, desenvolvimento, emprego, renda ou metas de bem-estar. Tudo roda aparentemente bem, até que a crise joga o modelo de pernas para o ar.
Como na Londres de 1940, a lógica precisa ser invertida. Atuar por inércia, impondo cortes orçamentários e elevação na taxa de juros em momentos de fuga de capitais e de enxugamento do crédito equivale a recomendar que um faminto faça dieta para alcançar uma vida saudável.
A crise acarretará um aumento inflacionário de custos, motivado pela elevação do dólar. Contra este, os juros são uma arma ineficaz. Ao mesmo tempo, a queda internacional dos preços das commodities pode ser a contrapartida para a depreciação do real.
Outra face do kit, o regime de metas de inflação, gerou, no passado recente, uma expressiva valorização do real, reduziu a competitividade da produção doméstica e deteriorou as contas externas. Criou, também, um processo especulativo intenso no mercado cambial, elevou a dívida pública e impediu um crescimento maior da produção industrial, do emprego e do PIB.
Churchill era um conservador ousado. Não abraçaria este caminho. Os membros do Copom são conservadores pequenos, tangidos pelo medo da ousadia. Querem manter seu kit funcionando, como se nada tivesse acontecido. É a melhor maneira de investir em favor da recessão que virá com a crise mundial. A lógica precisa mudar para uma orientação expansionista, que baixe os juros, restrinja movimentos de capitais e não persiga metas cujo efeito colateral tem sido o de deprimir mais a economia. É possível mudar de rumo. E não são precisos cinco dias para se decidir isso.
Gilberto Maringoni é doutor em História pela FFLCH-USP, pesquisador do IPEA, professor da Faculdade Cásper Líbero e autor de “A Venezuela que se inventa – Poder, petróleo e intriga nos tempos de Chávez” (Editora Fundação Perseu Abramo).
Publicado no Valor Econômico, em 08/12/2008.