Por Fábio Nogueira
À amefricana Lélia Gonzalez.
O modelo de Estado neoliberal — que combina menos estado social com mais estado penal — inicia o seu processo de consolidação a partir da primeira eleição de Fernando Henrique Cardoso, em 1994, sob forte impacto de seu “programa de estabilização econômica e monetária”: o Plano Real. Observamos, a partir daí, uma forte retração, por parte do poder público, em investimentos sociais básicos (saúde, educação, moradia etc) e a privatização de setores econômicos estratégicos (telecomunicações, ferrovias, rodovias, setor elétrico etc). Por sua vez, a estrutura de Estado é remodelada através do sucateamento dos serviços prestados à população, o esmagamento dos salários dos trabalhadores e do funcionalismo público e a terceirização.
Em linhas gerais, há uma subordinação da relação entre Estado e sociedade e Estado e investimento público ao livre fluxo de capital especulativo (capital financeiro) e à lógica de desmonte do aparato de proteção social e econômica. Este capital financeiro é atraído para o nosso país através de taxas de juros elevadíssimas – uma das maiores do mundo – que inibem o consumo, o crescimento econômico e contribui para um enorme endividamento das pessoas (empréstimo consignado, desconto em folha e financeiras). Ou seja, dá mais lucro – para a burguesia e as elites – especular com o dinheiro do que fazer investimento produtivo que gera emprego e renda. Isso fez que, com o empobrecimento da classe trabalhadora, aquela parte da população que fazia parte do “exército industrial de reserva” (majoritariamente negra) se tornasse dispensável para a reprodução do sistema capitalista. As relações de assalariamento entre a população negra, na formação de nossa sociedade de classes, no Brasil, ocorreu de forma desigual e inconstante (empregos pouco qualificados, com baixa remuneração e proteção social): o “bico” entre os negros sempre foi a regra. Ou seja, para um país de formação histórica escravista (em que o trabalho escravo não foi remunerado e ao negro foi imputada a condição de mercadoria) a regra é o que em outras formações histórico-sociais poderiam parecer a exceção: trabalho sem direitos ou, ainda, remuneração sem assalariamento. Por isso, é importante nos interrogarmos o quanto de ideológico e/ou normativo carrega o conceito de trabalho “informal”: esta idéia esconde o desejo – inconsciente ou não – de se fazer política como sujeitos bem delineados e valorizados pela perspectiva eurocêntrica do “civilizado”.
No entanto, com o neoliberalismo e o capitalismo financeiro, até mesmo as condições desta integração se tornaram mais difíceis o que elevou as taxas de desemprego e sub-emprego entre a população negra, em especial, a jovem, que reside nas periferias, alagados, favelas, subúrbios e guetos das grandes cidades e metrópoles brasileiras. Quando o PT era oposição aos dois mandatos do Governo tucano de Fernando Henrique Cardoso (1994-1997/1998-2002) este partido conseguiu reunir em torno de si amplos setores oposicionistas – partidos e movimentos sociais – que fincaram o pé e travaram um duro combate ao forte consenso que se disseminou na sociedade em torno das políticas neoliberais. Foi neste contexto que se deu a eleição de Lula em 2001: o lema foi a “esperança venceu o medo”, ou seja, era possível mudar apesar do terrorismo ideológico dos que apoiavam o sistema neoliberal de que qualquer mudança causaria necessariamente o “caos”. É óbvio que se as elites e a burguesia ganham com este estado de coisas – mesmo ao custo da miséria, do sofrimento e da morte de milhões de brasileiros – eles irão, o tempo todo, repetir o discurso de que qualquer mudança é ruim, que o bom é deixar como está. O fato é que quando Lula assume a presidência da República mantém a mesma política econômica de seu antecessor: estrangulamento do investimento em políticas que beneficiem o povo para favorecer banqueiros e especuladores. No entanto, Lula, em seu primeiro mandato, busca dialogar e atender parcialmente e de forma mitigada algumas reivindicações dos movimentos sociais. Esta estratégia política, obviamente, é frágil e logo começaram a surgir pressões de setores descontentes, nos movimentos sociais, intelectualidade e militância de esquerda, contra este estado de coisas. É deste processo, por exemplo, que, em 2004, nasce o PSOL: uma experiência que busca manter a coerência do projeto de esquerda e socialista em nosso país.
E o que “rolou” com a negrada? Bem, aqui é importante fazer algumas referências que, em função do panorama que traçamos, não pudemos tocar. Antes, porém, temos que mencionar os avanços da luta anti-racista, a partir dos anos 70, em nossa sociedade. Hoje existe um maior número de pessoas e instituições que debatem, interagem e procuram alternativas concretas para a superação do racismo. As pressões do movimento negro, como parte da sociedade civil organizada, levou como que o Estado brasileiro adotasse medidas para contornar a dívida histórica dos os afro-descendentes e superar as mazelas do racismo realmente existente.
Eu dividiria esta história recente do movimento negro em três etapas: a primeira, do final dos anos 70 (com a formação do MNU) à Constituição Federal de 1988 foi marcada por uma forte relação entre a luta anti-racista e as demandas classistas e populares; a segunda, a que se inicia em 1988 – com o advento da Constituição Federal até a Conferência de Durban, em 2001 – em que se observa o surgimento de uma multiplicidade de ONG´s, o fortalecimento de uma “sociedade civil negra” e a proliferação de assessorias parlamentares, de entidades, associações, sindicatos, prefeituras municipais e governos estaduais voltados para as demandas da comunidade negra; a terceira etapa, de Durban até os dias de hoje, tem como dois pontos centrais a criação da SEPPIR (Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial) e, no âmbito da sociedade civil, a emergência, em 2006, da inédita experiência do Conneb (Congresso de Negras e Negros do Brasil).
Em cada uma destas etapas podemos distinguir um traço característico das estratégias do povo negro que, sem querer me alongar muito, eu sintetizaria da seguinte maneira: entre 1978 e 1988 existiu um forte sentimento de aliança entre as expectativas históricas do movimento negro e de setores progressistas e da esquerda brasileira; já, entre 1988 e 2001, com a “institucionalização” do movimento negro — sob impacto das primeiras experiências administrativas de políticas para a população negra — há a formação de um espectro de entidades que se afastaram da perspectiva política “aliancista” anterior e se rearticulou no que, por falta de outro termo melhor, chamo de “sociedade civil negra” (esta formada, por “especialistas” na questão racial, distancia-se da política que, por sua vez, vaza de seu núcleo e se “autonomiza” desta). Por fim, de Durban para cá vejo dois movimentos: um, da esfera governamental e institucional, que se consolida com a criação da SEPPIR, em 2003, que caminha no sentido de direcionar e fazer convergir um conjunto de políticas institucionais voltadas para a população negra e que redefine novas formas de relação entre sociedade civil e o poder público; e outro, no âmbito do movimento negro, de reaglutinação das organizações do movimento negro e fazê-las em torno de um projeto político (objetivo final do Conneb).
Um é um movimento de governo que, por excelência, tem um duplo objetivo: aumentar a influência e a base de apoio e sustentação do “governo de plantão” com a pseudo-socialização de fatias do poder estatal e, ao mesmo tempo, fortalecer a hegemonia de um determinado projeto histórico representado pelo atual bloco de poder. Já, o movimento do Conneb – que surge no interior da sociedade civil – tem duas alternativas: ou fortalece a atual lógica de relação entre Estado e sociedade civil ou rompe com ela e estabelece uma nova agenda política e redefine a sua relação com o espaço público. No entanto, esta “parada” ocorre em tempos neoliberais e é este o pano de fundo no qual tento contrastar a minha linha argumentativa.
A crise social do neoliberalismo é um profundo golpe à auto-estima da população negra. O seu impacto sobre os negros é devastador: sem lugar no modo de produção capitalista, mesmo nos trabalhos menos qualificados e periféricos, tornamo-nos descartáveis. No entanto, não há uma determinação direta entre o fato econômico (ou seja, a deterioração da economia brasileira) e o racial (entendido como o recrudescimento do racismo): ao contrário, temos que analisar este fenômeno complexo destacando o caráter de co-determinação – ou se preferirem sobredeterminação – entre o racial e o econômico (que, por sua vez, se articula com outras esferas da vida em sociedade como o cultural e o político). Contudo, o que observo – e isso explica o atual refluxo dos movimentos sociais – é a tentativa de tornar a luta contra o racismo “asséptica” e livre das “impurezas” do mundo da política. Com isso, perdeu-se de vista os grandes projetos universalistas como os representados pelo quilombismo de Abdias do Nascimento, nos anos iniciais ao MNU. Um projeto universalista, já me adianto, que não se baseia no universal abstrato que foi historicamente manipulado para fazer com que os interesses de uma fração da humanidade (branca, européia e católica) se passasse como os interesses de todos e todas (mulheres, indígenas e negros). Ao contrário, me refiro ao universalismo substantivo: prenhe das contradições, aspirações e utopias dos que, no papel de co-construtores de uma nova ordem social (os negros e negras) articulam um projeto de nação e estado multi-racial e multi-étnico que seja de todos e todas.
O principal reflexo disso é que no atual foco em políticas públicas para a população negra, para setores majoritários do movimento negro, não está colocado o questionamento de para onde estão sendo drenados os recursos públicos (como o são, hoje, no Governo Lula, voltados para manter os lucros extraordinários dos bancos). O Governo Lula ataca em duas frentes: políticas compensatórias e Estado penal (aumento do orçamento em política de segurança pública, ações cinematográficas nos morros cariocas e militarização da questão social). Este cenário é amplamente favorável às forças dos mercados, dos burgueses e à propaganda racista: o projeto neoliberal do Governo Lula não alterou significativamente o lugar social ocupado pelos afro-descendentes. Evidentemente existem diferenças entre o modus operandi tucano e petista: para a elite política e financeira deste país algumas sinalizações do Governo em relação à população negra são vistas com inquietude e ressalva e os setores da oposição de direita, associados aos monopólios comunicativos, radicalizam o sentido disto mesmo quando não possuem os efeitos propalados pelos governistas de plantão. Vivemos um momento em que cabe, preponderantemente, ao movimento negro romper com a atual lógica dominante e estabelecer uma nova agenda política para o Estado brasileiro. As forças “modernizadoras” (neocolonizadoras?) e o “anti-racismo de resultados” representado pela conurbação das redes de interesses que selou de forma definitiva tucanos e petistas – e os partidos, grupos econômicos e interesses políticos a estes associados – tem que encontrar uma contra-força que vença a correnteza e apresente algo de novo.
Este é o maior desafio do Congresso de Negros e Negras do Brasil: não se deixar domesticar pelas forças da ordem, se rebelar contra o burocratismo, a alienação e o anti-racismo de resultados que vêm tomando conta de setores representativos do movimento social negro. Para isso, temos que priorizar menos as disputas locais entre grupos e lideranças e focar no que é, de fato, definidor para o sucesso desta empreitada: a construção coletiva de um projeto político do povo negro que reabilite a universalidade de nossa cosmovisão africana – enriquecida com a experiência das lutas na Diáspora – estruturante de um projeto nacional, antiimperialista, anti-racista e antineoliberal.
Fábio Nogueira é mestrando em Sociologia e Direito na UFF, da Comissão Nacional do Círculo Palmarino e do Diretório Nacional do PSOL.