Quando teve início o debate em torno da reforma do Código Florestal, alguns dos argumentos utilizados por aqueles que queriam mudar a lei eram que o objetivo da medida seria o de preservar os pequenos produtores e, ao mesmo tempo, incentivar a agricultura nacional, defendendo a posição estratégica do Brasil no exterior. Nós, juntamente com a comunidade científica e os principais movimentos ambientalistas e de trabalhadores rurais, desnudamos o real objetivo da alteração da lei: anistiar desmatadores e permitir o crescimento desenfreado do agronegócio no país, agora de maneira ambientalmente legalizada.
Mas os obstáculos à expansão do agronegócio não são apenas ambientais. Além da devastação florestal, sua implementação no país também contou com a grilagem de terras públicas e a ocupação ilegal de territórios por empresas estrangeiras. Assim, é natural que seus defensores exijam que também esses crimes sejam legitimados pelo Estado. Para eles, a alteração do Código Florestal, sozinha, não parece ser suficiente. As forças do agronegócio devem avançar, agora, sobre as discussões em torno de uma nova lei para a regulamentação da compra de terras por estrangeiros.
Atualmente, a aquisição de imóveis rurais por estrangeiros no país é regulada pela Lei nº 5.709/71. De acordo com essa lei, a aquisição de terras por estrangeiros pode chegar a, no máximo, 10% das terras de um município, sendo a propriedade estrangeira limitada a cinquenta módulos fiscais (equivalentes a até 5.000 hectares). A soma das propriedades de uma mesma pessoa também não deve exceder 25% da área municipal. O órgão responsável pelo registro e controle dessas medidas é o Incra.
A lei existente, no entanto, abre brechas para que os estrangeiros possam ampliar a aquisição de terras em território nacional por meio da associação com empresas brasileiras ou através de decretos presidenciais que autorizem a flexibilização dos limites previamente estabelecidos, mecanismo válido em casos considerados prioritários para os planos de desenvolvimento agrícola nacional. Agora, parece-nos que o objetivo do agronegócio, em sua feição nacional e estrangeira, é transformar tais brechas no eixo fundamental de uma nova lei, minimizando os efeitos das medidas restritivas até hoje existentes.
Uma das questões que começou a aparecer na mídia é de que a nova lei deve tratar a aquisição de terras a partir da lógica setorial. Ou seja, adequar o limite às necessidades do freguês. Se, por exemplo, o problema do etanol é a extensão de terras em torno das usinas, a lei deve flexibilizar a área de aquisição permitida em um determinado município. Se o problema do investidor em manejo florestal é a participação total no negócio, então é o limite de propriedade que deve ser flexibilizado.
Mas a análise de tais particularidades parece, na opinião desses segmentos, não estar ao alcance do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Assim, o debate em torno da nova lei prevê também a criação de um novo órgão, vinculado ao Poder Executivo e com legitimidade para legislar de acordo com a necessidade setorial e, além disso, estabelecer exceções aos limites de propriedade mediante uma contrapartida de investimentos por parte dos estrangeiros ou o apoio a um suposto projeto de desenvolvimento nacional.
Em outras palavras, cria-se uma lei flexível e um órgão – cuja composição ainda não está clara – com poderes quase ilimitados para definir o que de fato será considerado aceitável em relação à participação estrangeira no território nacional. A sociedade brasileira e a soberania nacional ficariam, em mais esse episódio, à merce de decisões tomadas à posteriori e ao sabor do lobismo financiado pelo agronegócio.
Mas alguém poderia dizer que essa movimentação é necessária, já que a lei vigente tem sido ineficaz ao criar um cenário que, por um lado, permite uma “invasão” de estrangeiros no país, em especial na região da Amazônia, criando um processo de internacionalização não soberana daquela região. Mas, por outro lado, faz permanecer uma condição de insegurança jurídica para aqueles estrangeiros que realmente desejam investir no país e que não sabem se poderão usufruir legitimamente das brechas presentes na lei atual. Cabe-nos então questionar aqui a pertinência dos dois cenários.
A respeito da “invasão” estrangeira, dados do Incra para 2009 mostram que os imóveis estrangeiros totalizavam, naquele ano, 4,348 milhões de hectares do Brasil, ou 0,5% do território nacional. Desses, 34,6% encontravam-se na Amazônia Legal e 65,4% no restante do país. Ainda segundo estatísticas do Incra, o movimento do capital estrangeiro na ocupação de terras nacionais é de refluxo e não de aprofundamento. Segundo o instituto, entre 1972 e 2009, o número dos imóveis de estrangeiros caiu de 43.403 para 34.371 e a área total ocupada se reduziu de 7,161 milhões de hectares para 4,384 milhões. Ou seja, a área “invadida” não apenas é insignificante no conjunto do território nacional, como não apresenta a concentração amazônica tal como anunciado e, ainda por cima, foi reduzida ao longo do período de vigência da lei atual.
Sobre o segundo questionamento à lei vigente, é preciso esclarecer que, ao que parece, a proposta atual não trata de acabar com a insegurança jurídica, mas de legalizar a situação daqueles que deliberadamente infringiram a lei. E não apenas os estrangeiros, mas também o capital nacional que hoje está em ocupação ilegal e se proclama dono de terras griladas e que é associado, ou poderá se associar, ao capital estrangeiro. Para nós, é inaceitável qualquer regularização que seja a legalização de um crime contra a sociedade brasileira.
Uma lei não pode ser criada para legitimar aqueles que descumpriram a legislação anterior. É a nova versão da anistia aos desmatadores. No fundo, o debate sobre o Código Florestal e as discussões sobre a regulamentação da compra de terras por estrangeiros são parte de um mesmo projeto de reorganização da ocupação de terras no Brasil. Projeto no qual a reforma agrária é extinta, as necessidades alimentares e habitacionais da população brasileira são colocadas de lado e o agronegócio exportador reina soberano sobre o território nacional.
Continuaremos nos posicionando contra esse projeto e buscando soluções legislativas que não sejam remendos ao crime, mas verdadeiras soluções para a preservação do meio-ambiente e o desenvolvimento econômico com igualdade para o Brasil.
Ivan Valente
Deputado Federal PSOL/SP