Por Afrânio Boppré
A crise está posta e é resultado da natureza do capital. A ninguém é facultada a escolha contra ou a favor da crise. Seria o mesmo que querer contrariar ou apoiar a existência da noite ou do dia; da vida ou da morte, por exemplos. A crise é inerente ao capital em sua fase madura (início do sec. XIX) e qualquer luta para erradicá-la e ser conseqüente tem que ser uma luta contra o capital além de voltada para a sua superação, ou seja, de combate à sua gênese e de caráter socialista. Em outras palavras, a crise está contida no DNA do capital e o socialismo como superação também. Se a crise é manifestação (febre), extirpá-la por vez, implica em eliminar a verdadeira causa, caso contrário, enquanto houver capital haverá sempre crises. Por isso, afirmamos que somente os socialistas assumem a dimensão propositiva plena perante a crise.
Antes de prosseguir é necessário um ajuste. O parágrafo acima pode sugerir que estaríamos afirmando que o que justifica a posição dos socialistas contra o capital e seu regime, seria um suposto sentido negativo das crises. Decerto que não. A crise apenas oferece uma conjuntura mais favorável para debater a essência do modo de produção capitalista e a sua indispensável e urgente superação. O capital ameaça a própria humanidade em qualquer de seus estágios, seja o de ascensão, apogeu, declínio ou crise. Nosso objetivo enquanto socialistas não é o de suprimir a crise e sim superar o capital.
No entanto não pretendemos ser principistas. Há uma imensidão universal de variações sobre o possível desdobrar e desfecho da crise, mas sempre circunscrita às hipóteses: revigoramento do capital ou socialismo. Variáveis econômicas, territoriais, políticas, culturais, sociais, ideolicas, ambientais atuam de maneira a definir os rumos da crise e do próprio capital. A crise não é monocausal e seu desfecho não é linear. Ela é viva e move-se. Por ser complexa, traz consigo brechas e possibilidades para margens de manuseio, manobra. Daí redundar o fato de a mesma ser gerenciável. Sendo assim, é bom lembrar que nenhuma gestão é neutra, pelo contrário, exige objetivos e atores sociais que operam sua gestão.
Um primeiro grupo de gestores reúne aqueles que assumem como objetivo maior proteger o capital da crise e para isso emprestam-lhe todo tipo de socorro. As primeiras ações são para apagar o incêndio, recuperar a paz perdida, retomar a confiança. Quando fracassados neste movimento inicial, o passo seguinte é hierarquizar a ordem de prejuízos. Uma luta visceral se desencadeia. O conflito assume múltiplas formas: capital versus trabalho; capital versus capital e trabalho versus trabalho. O Estado é levado ao centro do conflito e faz escolhas comprometidas com a hegemonia dominante.
Para os que assumem como objetivo gerir a crise a favor do capital há expectativas de contornar as conseqüências e seqüelas da crise, minorar seus efeitos. No entanto, jamais se desfazerão da possibilidade real de sua existência. Nutrem apenas a possibilidade de “driblar” a turbulência e a ela sobreviver.
A sobrevivência do capital se dá por meio de mais expansão, acumulação ampliada, centralização e concentração do capital. É da natureza do modo de produção capitalista ofertar riqueza em quantidades sempre maiores que a demanda. Esta situação implica em não conseguir viabilizar eternamente a realização do capital. A saída encontrada para sair desta situação, é levar o capital ao seu limite, acirrando e somando contradições. Ou seja, o capital exige a criação de mais capital, armando para o período subseqüente a possibilidade de crises mais agudas, profundas e em intervalo de tempo menor. As dinâmicas de centralização e concentração de capital reduzem as margens de autonomia regionais, nacionais ou setoriais para gerenciar a crise. Cada vez mais o capital e sua crise alcançam uma dimensão social maior. Uma amplitude mundializada. Estas são tendências gerais.
Já um segundo grupo tem como objetivo proteger a vida dos homens e do planeta. O socialismo é uma resposta como idealidade teológica, mas, no entanto, há uma enorme distância que precisa ser trilhada para transformá-lo em realidade. A crise deve ser concebida como uma dinâmica de gestão cujo objetivo é o socialismo. Em outras palavras, a crise cria uma oportunidade para a transição. O centro das ações não é o de viabilizar a realização do capital, desobstruir as artérias para facilitar a autovalorização-do-valor. Uma nova sociedade baseada numa profunda e radical redefinição de objetivos iniciaria a ser gestada. A função do Estado; a economia focada na reprodução de nossas vidas com respeito ao meio ambiente; valores antiracistas, contra o sexismo e a homofobia por exemplos; a igualdade social como objetivo etc. são novas premissas para reassentar a humanidade.
A resposta para o grave momento que a humanidade vive está condicionada a uma opção de classe. Os interesses entre capital e trabalho são antagônicos e irreconciliáveis, é o que diz a tradição marxista. No momento de crise os antagonismos se acentuam e a conciliação cada vez mais impedida fica. Nosso desafio é o de fazer da crise uma estratégia para acumular forças em favor da luta socialista. E se baseia na socialização da gestão da vida dos homens e do planeta em detrimento da gestão privada, individual.
O que a atual crise tem demonstrado é ser um fenômeno que envolve a todos indiscriminadamente, e por isso, ela mesma abre uma disputa sobre sua gestão. Os interesses individuais, locais, estão dando lugar aos interesses sociais, públicos, comum. A crise atual evidencia que o avanço da humanidade só pode ocorrer com ações dos homens conscientes, cuja base é a impossibilidade de se deixar a dinâmica da humanidade ao sabor dos capitalistas privados na busca incansável pelo lucro.
As novas regulamentações mundiais terão que suplantar o egoísmo individual dos capitalistas e estruturar-se sobre a preservação da vida humana e do planeta, independentemente de raça, religião, ideologia, nacionalidade, etc. Esse é o caminho da gestão da crise pelos socialistas, a luta pelo bem comum, e não a perpetuação do capital.
Se os capitalistas já não conseguem mais gerir a produção material da vida dos homens e do planeta sem que os destruam, os socialistas devem fazê-lo coletivamente através da gestão coletiva das unidades econômicas. A crise nos aponta empiricamente esse caminho, para além da teoria. É, pois, hora de lutar pelo avanço da gestão comum de nossas vidas. Esse é o desafio para os socialistas.
Afrânio Boppré é economista, professor e membro da Executiva Nacional do PSOL.